Passados mais de dois séculos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, sua defesa se tornou hoje uma das principais pautas das forças de esquerda. Uma ironia histórica, já que a classe responsável por consolidar os direitos humanos na Revolução Francesa foi justamente a burguesia. Isso se explica pelo fato de, no devir do turbilhão histórico, a burguesia ter passado de classe progressista e revolucionária a classe conservadora e reacionária, de modo que hoje é preciso, em diversos momentos, defender os direitos humanos contra a própria classe que os estabeleceu.
A origem burguesa, assim como os vícios e limitações dos direitos humanos não escaparam às críticas de Karl Marx. Um leitor de nossos dias que, de forma desavisada, travasse contato com os textos do filósofo alemão sobre o tema, provavelmente esperaria dele uma postura entusiasta ou mesmo adesista a esses direitos, haja vista a quase natural associação contemporânea entre “esquerda” e “direitos humanos”. Marx embora fosse, ao mesmo tempo, um defensor de direitos como liberdade de consciência, de imprensa, de livre associação, de reunião, etc., adota uma adota, uma postura crítica diante dos direitos humanos. A seguir apresentamos a crítica empreendida por Marx em sua obra Sobre a questão judaica, e como se pode falar em “direitos” de uma perspectiva marxista.
A polêmica sobre a questão judaica
A obra em que Karl Marx se envolve mais explicitamente com o tema dos direitos humanos é Sobre a questão judaica, publicada originalmente no primeiro e único volume do Deutsch-Französische Jahrbücher, em 1843. Neste texto Marx polemiza com Bruno Bauer, seu antigo colega de redação, quanto à emancipação almejada pelos judeus alemães. A questão dos direitos humanos surge, assim, em meio a uma discussão sobre a emancipação política e humana de forma geral.
Historicamente, a chamada “questão judaica” não era peculiar apenas à Alemanha, mas era um problema também na França e nos EUA. Marx analisa que, na Alemanha, a questão judaica era uma questão teológica. Os judeus estavam em oposição ao Estado, que reconhecia apenas o cristianismo como seu fundamento. Na França, por outro lado, as restrições aos judeus eram uma questão constitucional. Apenas nos Estados Unidos da América (EUA) a questão judaica era realmente uma questão secular, mas os EUA eram a prova de que a perfeição ou completude (Vollendung) do Estado político não tinha contradição com a existência da religião. A saída vislumbrada por Bauer passava pela libertação geral não apenas dos judeus, mas também dos alemães e de toda a humanidade em relação à religião.
Marx questiona, no entanto, como efetivar uma emancipação política completa da religião que não fosse meramente teológica. A emancipação política não poderia ser reduzida à emancipação teológica, e esta não seria tampouco a forma mais avançada de emancipação.
Os direitos do homem burguês
Os direitos do homem, ou direitos humanos, são distintos dos direitos do cidadão. Mas quem é este “homem”, pergunta Marx, que é distinto do “cidadão”? Este “homem” é o membro da sociedade civil. E por que o membro da sociedade civil é chamado de homem, de “homem em si”, e por que os seus direitos são chamados direitos humanos? Segundo Marx, esta diferença entre “homem” e “cidadão” emana da relação do Estado político com a sociedade civil, da própria essência da emancipação política. Os direitos humanos, em relação aos direitos do cidadão, não são nada mais do que os direitos dos membros da sociedade civil, isto é, dos homens egoístas, separados dos outros homens e da totalidade da sociedade.
O direito à liberdade, por exemplo, é índice deste egoísmo e isolamento do “homem em si”. O artigo sexto da Declaração dos direitos do homem e do cidadão menciona a liberdade entre os direitos “naturais e imprescritíveis”. Este direito seria, segundo o texto de 1791, “o poder de fazer tudo o que não cause danos a outro”. O limite em que cada um poderia se mover livremente seria determinado pela lei, assim como uma cerca determina o limite entre dois lotes. Este direito trata, segundo Marx, do direito do homem enquanto indivíduo isolado de se fechar em sua própria mônada (algo único). O direito humano à liberdade não se baseia na relação, na ligação, na conexão do homem com o homem, mas em sua separação, em seu isolamento, em sua alienação para com o próximo. É o direito do indivíduo segregado à segregação, e a aplicação prática deste direito à liberdade é o direito à propriedade privada.
Marx segue adiante e examina também os direitos à igualdade e à segurança (égalité e sûreté). A igualdade em seu sentido não político seria aqui, de acordo com o filósofo alemão, nada mais do que a igualdade de liberdade anteriormente criticada, a saber: a de que cada homem tem o direito, enquanto tal, de ser considerado. A segurança, por sua vez, seria para Marx o mais alto conceito da sociedade civil, que é o de polícia. Seu significado se resume a que toda a sociedade existe apenas para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade. O conceito de segurança da sociedade civil não supera o egoísmo, mas é apenas mais uma maneira de o afirmar.
Nos direitos humanos, o homem é tomado como uma abstração, como forma pura sem conteúdo, o que levou a diversas contradições entre a teoria e a prática dos revolucionários franceses. Enquanto o direito à segurança era afirmado em teoria como um direito humano, a violação ao sigilo de correspondência era colocada abertamente na ordem do dia. Enquanto a liberdade ilimitada de imprensa era uma decorrência dos direitos humanos (direito à liberdade individual), ela era completamente negada quando comprometia a liberdade pública. Na prática, o direito humano à liberdade deixava de ser um direito tão logo entrava em conflito com a vida política, enquanto que na teoria, a vida política era apenas um meio para a garantia dos direitos humanos. Ainda na Revolução Francesa, os jacobinos desnudaram o antagonismo entre direito de propriedade e direito à existência, e Babeuf explorou o abismo escancarado entre o ideal republicano de igualdade e as forças suscetíveis de realizá‑lo. Com a Revolução Francesa, o homem não se libertou da religião, ele obteve a liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade da propriedade. A crítica de Marx aos direitos humanos é, em resumo, uma crítica à vida material capitalista, atomizada e egoísta.
Marxismo e direitos humanos
As críticas de Marx aos direitos humanos não significam que ele não conferia certos direitos aos indivíduos. Suas críticas contra a objetificação do trabalhador ou sua redução a um simples apêndice de máquina na produção capitalista já sinalizam esta preocupação desde suas obras de juventude. Sua crítica reside, principalmente, no fato de que uma emancipação formal não elimina a alienação social real.
Os direitos humanos, no contexto de Sobre a questão judaica, são definidos pela distinção entre os “direitos do homem” e os “direitos do cidadão”. O que estava em jogo, portanto, não eram os direitos humanos “em geral”, mas apenas neste sentido mais restrito. Marx não era contra direitos específicos, tais como liberdade de associação, liberdade de imprensa ou liberdade política, até mesmo pelo fato de sempre ter considerado esses direitos como pressupostos necessários para um movimento revolucionário. O que ele critica, ao contrário, é o fato de os direitos humanos serem utilizados como argumento para limitar os direitos do cidadão, considerando-lhes apenas como meios subordinados à garantia de direitos apolíticos.
Um fato histórico revela na prática esta divisão entre “direitos do homem” e “direitos do cidadão” de que fala Marx: a mesma Assembleia Nacional que promulgou a Declaração dos Direitos do Homem votou também a lei de Le Chapelier, a qual proibiu as livres organizações de trabalhadores. Em 14 de junho de 1791, o decreto determinou que a coalisão de trabalhadores era “um atentado contra a liberdade e à Declaração dos Direitos Humanos”, e sua violação resultava em multa de 500 livres e perda dos direitos civis por um ano. Segundo Marx, esta lei visava a controlar de forma policialesca a concorrência entre capital e trabalho dentro de limites confortáveis para o capital.
Para Marx, se os direitos humanos se limitarem à noção de “igualdade de direitos” – o que define os direitos do homem –, então não se pode expressar nenhuma objeção às relações de mercado como se fossem um “contrato livre” entre livres possuidores de mercadorias. Este “livre contrato”, na verdade, é perfeitamente compatível com a exploração, e apenas a luta social pode colocar limites, por exemplo, à duração da jornada de trabalho.
A exploração do trabalhador não pode ser abolida – e nem mesmo regulada – invocando-se os “direitos do homem”. Estes, ao contrário, justificam, explicam, fornecem uma razão à exploração devido ao princípio do uso livre da propriedade e da igualdade das partes contratantes. Marx afirma que entre direitos iguais decide a força, a violência (Gewalt). A duração do dia de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como uma luta entre a classe dos capitalistas e a classe dos trabalhadores. Se o que está colocado é direito contra direito, no sentido de que tanto o trabalhador quanto o capitalista são “livres” para negociar “igualmente” a duração da jornada, vence o mais forte.
A crítica de Marx à abstração dos direitos humanos leva à conclusão de que a emancipação política deve levar à emancipação social. As limitações dos direitos do homem apontadas por Marx não os tornam nulos ou sem importância. Na Crítica ao programa de Gotha, por exemplo, Marx repete constantemente palavras como sufrágio universal, direito à livre reunião e associação, liberdade de imprensa, educação pública sem intervenção estatal, etc.
Sobre a liberdade de consciência, por exemplo, que na prática se resumia apenas à liberdade de consciência religiosa, ele afirma: “Cada um deve poder satisfazer suas necessidades tanto religiosas quanto corporais sem que a polícia intrometa o nariz”. Ele orientava os partidos dos trabalhadores que aproveitassem esta liberdade de consciência, que era meramente uma tolerância religiosa, para ir mais além, superando o fantasma da religião. Mesmo com todas as críticas à religião e à “liberdade de consciência”, ele considera que este direito deve ser resguardado. Por esta razão, Engels afirmou, em 1847, que enquanto a democracia não fosse alcançada, comunistas e democratas lutariam lado a lado, pois seus interesses eram os mesmos. Direitos democráticos formais, embora insuficientes, são uma condição necessária para a transformação social. É necessário transgredir não os direitos humanos, mas o mundo atual que lhes impõe limites e obstáculos rumo à plenitude humana. Não se trata de negar a importância da emancipação política, mas de ultrapassar seus resultados conservando‑os, de caminhar rumo à verdadeira democracia.
A burguesia sempre apresentou seus interesses de classe como universais, como se fossem interesses de toda a sociedade. O homem que aparece abstratamente representado sob o manto do “homem universal” na declaração dos direitos do homem e do cidadão é um homem de uma classe social específica: o homem burguês. A luta pela universalização dos direitos humanos é justamente uma tentativa de forçar um conteúdo concreto a uma determinada forma abstrata: é o esforço de fazer com que o homem pobre, proletário e assalariado tenha, na prática, os mesmos direitos e garantias que aquele homem burguês representado nos direitos humanos como o “homem universal”. Conceitos como “liberdade” e “igualdade” exigem uma base material concreta para que se tornem efetivos. A justiça e a polícia se comportam de maneira distinta para o pobre e para o rico, mostrando que o homem universal e abstrato não existe na efetividade, mas apenas homens burgueses, homens assalariados, lumpens, etc. A liberdade dos despossuídos é, na prática, o direito à fome, ao desabrigo e ao desamparo. Nos limites das sociedades de classes, a universalização e a plena garantia dos direitos humanos são inalcançáveis.
Glauber Ataíde, filósofo e correspondente de A Verdade na Alemanha