O Direito não vai salvar ninguém: “Democracia em Vertigem” e o apego da esquerda à forma jurídica

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Foto: Democracia em Vertigem


Às vésperas do último feriado de corpus christi, em 19 de junho foi lançado na Netflix o documentário nacional “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa. Traçando um paralelo entre a vida da cineasta-personagem e o cenário político brasileiro, desde a ascensão de Lula ao processo de impeachment sofrido pela ex-presidente da República Dilma Rousseff, traz cenas inéditas e bastidores sobre a prisão do ex-presidente, em pouco mais de duas horas de filme.

A inicial menção ao documentário se justifica tanto pela atualidade de seu lançamento quanto da crise política que retrata. No entanto, é na crítica esboçada pela cineasta que se encontra o fundamento do paralelo que aqui se esboça. Isso por que, num viés eminentemente de esquerda, apesar de reconhecer algumas limitações da política de conciliação adotada pelo ex-presidente Lula quando se elege para o primeiro mandato em 2002, a narradora demonstra surpresa com os caminhos tomados pela política brasileira e o desfecho dos governos do PT após o processo de impeachment de Dilma e a prisão de Lula.

Não é o objetivo deste esboço tratar sobre aspectos econômicos dos governos de administração capitalista divergente advindos do petismo. O que chama a atenção é a eminente fé que setores da esquerda tem depositado na democracia, no Estado Democrático de Direito e, ao fim e ao cabo, no próprio sistema jurídico e na Constituição como garantidoras da luta progressista.

O apego da esquerda latino-americana pós-ditadura ao Direito e às instituições é transparente no documentário. A crença nas instituições e, mais recentemente, a busca de uma solução para a crise dentro do próprio sistema jurídico demonstra o desconhecimento da própria natureza do Direito, que não é periférico no conjunto da reprodução capitalista. Tal é a tese de Alysson Mascaro, que, em sua atualíssima obra Crise e golpe, situa o papel central do Direito na atual crise brasileira: defende o professor da Universidade de São Paulo que, se o golpe de 1964 é representado pelo domínio imediato dos militares, o de 2016 tem à testa o direito. Assim, longe de ser instrumento de emancipação social ou qualquer outra denominação que lhe queira dar os setores mais à esquerda, o Direito cumpre seu papel na sociedade capitalista, disso decorrendo, segundo Mascaro, que o atual golpe é determinado economicamente e sobredeterminado juridicamente.

(Diga-se de passagem, a tese ganha consistência se considerarmos as constantes divulgações do jornal The Intercept Brasil de conversas mantidas entre o ex-juiz federal Sérgio Moro e o procurador do Ministério Público Federal Deltan Dallagnol sobre a operação Lava Jato, que culminou na prisão de diversos políticos, entre eles o ex-presidente Lula, enquanto candidato em disputa à Presidência da República…).

O ponto é que, mesmo considerados os novos arranjos da sociedade brasileira e capitalista de maneira geral, parece possível localizar na clássica crítica jurídica marxista/soviética aportes para a compreensão da crise da por que passa a sociedade brasileira, se se procura uma saída à esquerda. Alysson Mascaro traça este paralelo, resgatando as lições de Pachukanis, para quem o Direito é estrutura fundamental e necessária do capital.

Segundo Pachukanis, o direito, enquanto conjunto de normas, não passa de uma abstração sem vidae a forma jurídica, em sua forma desenvolvida, corresponde precisamente a relações sociais burguesas-capitalistas. Em outra passagem de sua principal obra Teoria Geral do Direito e Marxismo, o autor defende que apenas a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico esteja plenamente determinado nas relações sociais.

Aproximando a forma jurídica da forma mercadoria de Marx, a sofisticada teoria desenvolvida por Pachukanis traz que, ao mesmo tempo que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna portador de valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos.

Assim, na ordem jurídica burguesa, quem é proprietário o é por direito; o trabalhador assalariado, ao contrário do escravo, surge no mercado como livre vendedor de sua força de trabalho e, por esta razão, a relação de exploração capitalista se realiza sob a forma jurídica do contrato.

Os aportes teóricos do autor resgatam a crítica ao socialismo jurídico formuladas por Engels e Kautsky; assim, o Direito é inapelavelmente burguês, sendo impossível chegar ao socialismo através do Direito. O que não significa, e isso já admitiam os próprios autores e mesmo Pachukanis, que não se devam propor reivindicações jurídicas, mas considerá-las como passagem, e não um fim em si mesmas.

Retomando o contexto da esquerda brasileira, o que se verifica é que falta compreender a especificidade do jurídico como forma social própria do capitalismo[2]. Falta, ainda, ter como horizonte a limitação em se lutar por reformismos abandonando a crítica das relações sociais capitalistas. Falta considerar a naturalização da ideologia jurídica, que não se sujeita a críticas: pelo contrário, seus agentes, em sua maioria advindos da classe média e impregnados de um elitismo mal disfarçado em luta por “Justiça”, se impõem como fórum de racionalidade técnica, legalidade e neutralidade jurídica[3].

Apresentando-se o Direito como estrutura fundamental e necessária do capital, o reformismo ou a concessão de vantagens por meio de instituições jurídicas não são capazes de transformar verdadeiramente as condições das classes trabalhadoras. Do contrário, revestido do discurso jurídico, anunciam-se medidas como a Reforma da Previdência Social, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados como PEC nº 06, de 20 de fevereiro de 2019, e põe em xeque a seguridade social no país, especialmente com relação à parcela mais pobre da população.

Nada disso é novo; o que surpreende é a aparente ignorância por parte da esquerda que se choca com a derrocada do petismo e o cenário político atual, tomando a defesa da democracia e do Estado de Direito como pauta e mesmo tábua de salvação sem vislumbrar no horizonte a sua superação. Assim, parece necessário olhar para a ideologia jurídica e as instituições juridicamente postas como formas sociais capitalistas, onde a crise não é exceção, mas regra. A diferença é que dessa vez o Direito é seu protagonista.


Caroline Rodrigues Menezes[1]

[1] Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD-UFSC. Advogada.

[2] No artigo “Direito e marxismo: entre o antinormativo e o insurgente”, Moisés Alves Soares e Ricardo Prestes Pazello apontam como o abandono à crítica estrutural à esfera jurídica como forma social própria do capitalismo significou a ruína das teorias críticas do direito. Nesse sentido, a negação da crítica estrutural e um certo fascínio por constitucionalismos levou ao estabelecimentos de teorias críticas sob escombros, paliativas e facilmente absorvidas pelo paradigma reformista e pelo socialismo jurídico à moda de Menger.

[3] Cf. Alysson Mascaro em Crise e Golpe. O filósofo do Direito trabalha ainda a questão da ideologia jurídica ou ideologia dos juristas e seu local de destaque no cenário político atual como responsável por ilusões reformistas e de canalização de lutas para que não eclodem e deságuem em políticas públicas, sendo por elas administradas (p. 60).