“O erro do governo não é a falta de persistência, mas a persistência na falta.”
José Levino
Historiador
Foto:Acervo/Folhapress
BARÃO DE ITARARÉ – Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Nasceu no dia 29 de janeiro de 1895 em trânsito. A família vinha da fazenda do seu avô, no Uruguai, com destino ao Rio Grande do Sul. A mãe, Maria Amélia, filha de um estadunidense descendente de russos. O pai, João Aparício Torelly, filho de um italiano com uma gaúcha. “Uma verdadeira Liga das Nações”, dizia Torelly.
Sua mãe morreu por suicídio quando ele tinha apenas dois anos. Criado pela avó, no Uruguai, voltou para Rio Grande aos sete anos, onde fundou seu primeiro jornal, o Capim Seco. Era um único exemplar, escrito à mão, mas foi apreendido e proibido de circular pelo diretor porque a ilustração era uma cobra de batina. O padre reitor do Colégio tinha o apelido de Jararaca.
Queria ser advogado, mas o pai o mandou estudar medicina, argumentando: “Para que um advogado consiga boa clientela, precisa ter muito talento. Um médico, basta assinar receitas e atestados de óbito”.
Torelly não gostava muito de estudar, mas lia tudo: Buda, Confúcio, Maomé, Keppler, Galileu, Newton, Karl Marx. Muito jovem, começou a escrever no jornal Última Hora, de Porto Alegre. Brincava muito com a Academia Brasileira de Letras. Afirmava que, para um escritor entrar, precisava esperar um imortal se contradizer e morrer. Não chegou a se formar em medicina, mas desenvolveu pesquisas na área de bacteriologia. Um estudo sobre febre aftosa chegou a apresentar a autoridades, inclusive Getúlio Vargas, que, na época, era deputado estadual, mas ninguém levava a sério porque as palestras eram todas na base da brincadeira.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1925, trabalhou no jornal O Globo, do qual saiu a convite de Mário Rodrigues Filho, irmão do famoso escritor Nelson Rodrigues, para o jornal A Manhã, de propriedade de Mário Rodrigues, o pai. Depois, criou o seu próprio jornal, A Manha.
As gozações com as autoridades lhe renderam várias ameaças, concretizadas após a “Revolução de 30”, quando editava o Jornal do Povo, pela publicação da história da Revolução da Chibata, ocorrida na Marinha em 1910, liderada pelo “Almirante Negro”, João Cândido (Leia A Verdade, nº 39). Foi sequestrado, apanhou, rasparam-lhe a cabeça e o deixaram nu num local deserto. Não recuou. Na porta da sala da redação, colocou uma placa “Entre sem bater”, numa alusão à repressão de que fora vítima.
O pseudônimo Barão de Itararé tem origem num boato ocorrido durante o levante de 1930. Quando a tropa rebelde se deslocava do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, dizia-se que a força governamental esperava em Itararé, divisa de São Paulo com Paraná. Não houve a batalha, mas Torelly a relatou, informando que tinha sido herói nesta luta e, por isso, merecia o título de “Duque de Itararé”, depois rebaixado, “simplesmente por modéstia”, para “Barão de Itararé”.
Torelly foi um dos fundadores da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Não participou da Rebelião de 1935, conhecida como “Intentona Comunista”, mas foi preso, tendo sido companheiro de cadeia de Graciliano Ramos, que faz menção a este fato em Memórias do Cárcere. “A Manha deixou de circular e eu com ela”, contava o humorista. Solto, relançou o jornal.
Com a redemocratização, candidatou-se a vereador pelo PCB no Rio de Janeiro. Foi eleito em oitavo lugar com o lema de campanha “Mais água e mais leite e menos água no leite!”. Seu mandato foi dedicado às causas populares, a exemplo da defesa dos indígenas e do voto dos analfabetos. Era a atração das sessões. Testemunho de Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB: “O Barão, com seu espírito, não só fez a Câmara rir, como as lavadeiras e os trabalhadores. As favelas suspendiam as novelas para ouvir as sessões da Câmara, que eram transmitidas pelo rádio”.
O mandato durou pouco porque o governo “democrata” promoveu a cassação do registro do PCB em 1947, mesmo ano da eleição de Torelly, e, no ano seguinte, foram declarados extintos os mandatos dos parlamentares eleitos pelo Partido Comunista do Brasil. Torelly discursou: “Saio da vida pública para entrar na privada”. Saiu da Câmara gritando: “Viva a Revolução… de 30”! A polícia só ouviu a primeira parte, e o Barão foi detido, amargando dois meses e meio num navio-prisão.
Por falta de recursos financeiros não conseguiu reeditar A Manha, passando a publicar Almanhaques semestralmente, até relançar seu jornal em São Paulo, durando apenas dois anos. Em 1955, escrevia colunas no diário A Hora e no quinzenal Paratodos, dirigido por Jorge Amado. Quando veio o golpe de 1964, o Barão se sentia doente. Dizia: “Antigamente, minhas pernas levavam meu corpo. Agora, é o meu corpo que arrasta as minhas pernas”.
Uma curiosidade: o Barão, nos últimos anos de vida, viúvo, morava sozinho num apartamento. Não permitia que matassem as formigas nem as baratas. As formigas, explicava, porque lhe ajudaram a descobrir que estava diabético. As baratas porque foram treinadas pelos presos políticos e serviam de emissárias entre eles, carregando pequenos bilhetes de uma cela para outra.
Em 1971, deu sua última entrevista para a revista Realidade. Morreu sozinho no dia 27 de novembro daquele ano. Poucas pessoas compareceram ao seu enterro num sábado, dia de chuva, no Rio de Janeiro, Cemitério São João Batista, sepultura 248, quadra 13.
O Legado Do Barão
Apparício Torelly não entrou na Academia, mas tornou-se verdadeiro imortal. São dele expressões como “Há algo no ar além dos aviões de carreira”, “quando pobre come frango, um dos dois está doente”, e tantas outras relacionadas no livro Máximas e Mínimas. Também é de sua lavra a denominação de “galinhas-verdes” dada aos integralistas (fascistas da década de 1930).
Mais que isso, Torelly representa o destemor, a resistência à opressão, a coerência. Vamos concluir com o depoimento de outro imortal, o romancista do povo Jorge Amado, no prefácio à obra Máximas e Mínimas: “Não houve no Brasil, na década de 40, escritor mais unanimemente lido e admirado do que o escritor cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira e lutava pelas causas populares. Mais do que um pseudônimo, o Barão de Itararé foi um personagem vivo e atuante, uma espécie de Dom Quixote nacional, malandro, generoso e gozador, a lutar contra as mazelas e os malfeitos”.
Mouzar Benedito: “O Barão de Itararé se dizia ‘herói de dois séculos’ porque nasceu em 1895. Pois esse segundo século está no fim e o Barão continua atual. Ao que parece, vai penetrar através de suas máximas e mínimas no século 21 também e virar herói de três séculos”. Virou.
Frases do Barão
“De onde menos se espera, daí é que não sai nada.”
“O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.”
“Dizes-me com quem andas e eu te direi se vou contigo.”
“Cleptomaníaco: ladrão rico. Gatuno: cleptomaníaco pobre.”
“Aquele senhor era tão tímido que até tinha vergonha de proceder honestamente.”
“O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato.”
“Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados.”
“O banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro.”
“Os juros são o perfume do capital.”
“Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades.”
“Adolescência é a idade em que o garoto se recusa a acreditar que um dia ficará chato como o pai.”
“A televisão é a maior maravilha da ciência a serviço da imbecilidade humana.”
“Senso de humor é o sentimento que faz você rir daquilo que o deixaria louco de raiva se acontecesse com você.”
“Se você tem dívida, não se preocupe, porque as preocupações não pagam as dívidas. Nesse caso, o melhor é deixar que o credor se preocupe por você.”
“O homem que se vende recebe sempre mais do que vale.”
“Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato.”