Por Julio Algañaraz
Extraído de www.clarín.com
É a fome o novo vírus que começa a difundir-se sobretudo no empobrecido sul da Itália, em meio à crise do coronavírus. Já começaram os sinais de um protesto que promete converter-se em uma explosão social difícil de controlar. O Papa advertiu este sábado pela manhã que “se começa a ver gente que tem fome porque não pode trabalhar e não tinha um trabalho fixo. Estamos vendo o que virá depois, mas começa agora”.
Quatro milhões de precários que viviam dos bicos estão desesperados. Não só quatro milhões que são os mais pobres. Também comerciantes de pequenos negócios, trabalhadores que não têm como trabalhar, como o que disse à filha chorando em Nápoles: “O que faço se sou cuidador de automóveis e não há mais na rua?”.
Em Bari, a capital da Puglia, um vídeo que percorre as estações televisivas e as redes sociais mostra uma mulher gritando e em lágrimas que protesta em frente a um banco fechado. Hoje (28/03) é sábado. Dois policiais tratam de acalmá-la, mas chega seu marido e grita: “Sou um comerciante, tenho o negócio fechado, este é meu banco, quero que me emprestem 50 euros”. Começa a socar as portas, enquanto os policiais tratam de tranquilizá-lo.
Um pedestre passa, detém-se e lhe dá dez euros. “Tome, para que possa comer.” O outro não lhe agradece, não dá mais. Torna a gritar contra seu banco.
Nas cidades do sul começou outro fenômeno. Em Nápoles, em Palermo, em Reggio Calabria, os que voltam para casa com as bolsas do supermercado são assaltados pelos famintos que lhes tiram a comida e o resto e fogem lhes gritando “perdão, tenho fome!”.
Na quinta-feira, em um hipermercado da cadeia Lidl em Palermo se produziu o primeiro assalto em massa às gôndolas. A gente gritando encheu os carrinhos e trataram de fugir. “Não temos dinheiro e não queremos pagar”, vociferavam.
Havia uma boa guarda policial que deteve os desesperados. Obrigou-os a não levar nada e em troca ninguém foi preso nem autuado.
Mas os revoltosos pediam comida aos gritos. “Como fazemos para viver?”. Pergunta óbvia, como a conclusão do ministro que deduziu: “Existe o perigo de um colapso social”. Até agora se manda mais polícia cuidar dos supermercados.
Em Bari, uma funcionária do governo, Francesca Bottalocci, saiu à rua com duas bolsas de comida e sem fazer recriminações as entregou a duas mulheres que gritavam do balcão de casa: “Não temos dinheiro, não temos mais nada. Venham ver”.
Um vídeo mostrou em Nápoles, mas a cena se multiplicou em muitos outros cenários do sul, um homem que não fala, não faz gestos, e empurra um carrinho onde pôs pão, um frasco de tomate, azeite e bolachas. Faz a fila e quando está frente ao caixa alarga os braços: “Não tenho nada”. A caixa agarra o telefone e avisa: “Chamem a polícia, o senhor disse que não tem dinheiro para o gasto e que não pode pagar. Não comprou vinho, só o essencial”.
Sem dinheiro para comida
Na Itália da quarentena férrea começa a faltar comida. Não nas gôndolas dos supermercados, mas na casa de muitos italianos. Na Sicília, um a cada três trabalhadores recebe dinheiro vivo. As proibições para o isolamento social contra o coronavírus jogaram por terra a economia precária de todos os que vendem fruta e verdura nos mercados locais. E outros bens de consumo popular.
As famílias pedem assistência alimentar aos municípios e à Cáritas, a grande organização de ajuda da Igreja. A piedade popular e a solidariedade social têm feito reaparecer a figura em Nápoles da “compra suspensa”. Os que podem fazem suas compras e adicionam o “suspenso”, produtos que deixam no caixa para que sejam doados aos que não podem pagar. Tantos criticam os “torrões”, mas no Norte não existe esta elementar tradição de bondade humana que praticam os “subdesenvolvidos” do Sul.
No Norte italiano, a área onde se concentra a tragédia da epidemia de coronavírus, os trabalhadores param as fábricas porque falta segurança. Funcionam os subsídios sociais e os trabalhadores autônomos recebem um bônus imediato de 600 euros mensais. Muito pouco, mas muito para os que não recebem nada.
O governo estuda um rendimento de sobrevivência. Existe já um rendimento de cidadania, mas só cobre uma parte. E a fome não pode esperar semanas de discussões. Há que acalmá-la já. “Os tempos da reflexão política são incompatíveis com os do estômago”, escreve Sergio Rizzo.
A Itália não cresce há tempos. A crise de 2008 a pôs em crescimento zero até hoje, onde se goza o nível de vida de quinze anos atrás. É o país que menos cresce na União Europeia. A pobreza absoluta no Sul aumentou de 5,8%, em 2008, para 10%. E o futuro, que é de recessão apertada com ameaças de uma depressão econômica devastadora se durarem a epidemia e seus efeitos, não deixa espaços para o otimismo mais prudente.
A sombra abominável do colapso social emudeceu os italianos, que já não cantam nos balcões como até uns dias atrás, para elevar o ânimo e mostrar que “sairemos desta”. O vírus da fome ameaça substituir o coronavírus que algum dia será domado, possivelmente mais cedo ou mais tarde, depois de ter causado uma grande devastação também da vida social.