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domingo, 22 de dezembro de 2024

O golpe fascista na Bolívia

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Mas não houve crise econômica. Se o povo ganhou nos 13 anos de governo, o empresariado boliviano ganhou também. Porém, isso não é suficiente. A burguesia quer ter a propriedade e o controle dos bens de produção e o governo nas próprias mãos.

José Levino


Foto: Reprodução

LA PAZ – Desde o século 16, os povos indígenas da Bolívia suam, agonizam e morrem extraindo riquezas do solo pátrio. Tudo para enriquecer as burguesias da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte. Isso não é imaginação, nem fantasia ideológica, e muito menos complexo de vira-lata. É realidade, é história.

Formou-se, como nos demais países da América colonizada, uma classe dominante local, dependente e associada ao dominador. Em torno desta, para as funções intermediárias do sistema, sua subordinada, um setor médio, que, para se manter na função ou tentar ascender à cúpula da pirâmide, reproduz, até de forma mais agressiva, um profundo desprezo pelos dominados, pelos pobres, de qualquer raça ou gênero. É a “escória”, a “caterva”.

Quando tais setores médios se frustram, perdem o nojo do povo e buscam arrastá-lo para dar força às suas bandeiras hipócritas de justiça, igualdade, liberdade e quejandos. Conseguido o objetivo, viram-lhe impiedosamente as costas e voltam a “jogar pedra e bosta na Geni”.

É com base numa análise das classes sociais existentes na Bolívia (como em qualquer outro país) que compreendermos as razões da queda tão rápida e sem resistência (ou quase) de Evo Morales. Caso contrário, pode-se acreditar que o povo se levantou contra a tentativa de Morales tornar-se ditador, que se tratou de uma defesa da legalidade, com a bênção de Deus e tudo. Muitos dos que passam esta visão são os mesmos que em nossas terras tupiniquins (onde, cada vez mais “os índios se tornam seres humanos”), defendem abertamente a volta do AI-5. Portanto, leitores, mantenham “olho aberto, ouvido atento e a cabeça no lugar”.

Desde o fim das comunidades primitivas até os nossos dias, a História Humana é a história de luta de classes. Não se trata de invenção de Karl Marx. Ninguém cria ou defende a luta de classes. Ela é um dado da realidade. A questão é de que lado você vai se posicionar. Pode ser de lado nenhum. Mas nem pense que ficará impune, pois está dentro do processo, queira ou não. “Decifra-me ou te devoro”. Quem já não ouviu, seja de um amigo seja de um Chefe de Estado: “Quem não está comigo, está contra mim”? É assim.

As Lutas do Povo Boliviano (Uma Síntese Apertada)

Não deixa de ser marcante o fato de um indígena assumir a Presidência de um país, no caso, a Bolívia. Evo Morales, em 2006, foi o primeiro, apesar de os indígenas constituírem a maioria do povo do país (65% da população, de 36 etnias).  Não entenderemos o presente sem uma viagem ao passado.

Em nenhum dos países colonizados pelos europeus, os povos nativos (originários) entregaram seu território pacificamente. Não por considerarem a terra como propriedade sua, mas por reverenciá-la como sua mãe. Qual o filho, em sã consciência, não arriscaria a vida defendendo sua mãe? No caso da Bolívia, aquelas que causaram maiores perdas aos invasores foram as guerras de libertação lideradas por Tupac Amaru (século 16), Tupac Amaru II (século 18) e Tupac-Katari (século 18).

As lutas pela independência foram retomadas no século 19, desta feita, lideradas pelos descendentes de espanhóis ressentidos com a exploração da Coroa. Simón Bolívar (1783-1830), venezuelano, é herói nacional em vários países sul-americanos (Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela), pois comandou várias guerras pela independência. Seu objetivo era unir toda a América Espanhola num só país, a Grã-América. Seu ideal não prosperou. Os espanhóis foram expulsos, mas o Continente se retalhou. A Bolívia teve sua independência em 1825 e seu nome homenageia o Libertador. Não bastou o isolamento; as elites de cada país se enfrentaram na ambição por território. A Bolívia perdeu para o Chile a saída para o Oceano Pacífico (1883), cedeu o Estado do Acre para o Brasil (1903) e perdeu outra parte do território para o Paraguai (Guerra do Chaco-1935). 

Embora não tendo a liderança nas mãos, os indígenas foram protagonistas nas lutas do século 19, apoiando os liberais, que ofereciam terra e autonomia aos nativos. Vitoriosos em 1889, num ato de extrema traição e covardia, os liberais cuspiram nos indígenas, desarmaram-nos e executaram os líderes. 

A luta nacionalista de 1930 (Guerra do Chaco) traz novamente os indígenas ao palco do seu drama (ou tragédia) e à aliança com o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), criado em 1941 por intelectuais e outros setores da “classe média”. Acontece o 1º Congresso Indígena, em 1945. A chamada Revolução de 1952, desencadeada pelo MNR, abriu espaço para o fortalecimento do movimento popular, composto pelos três setores mais importantes do povo – indígenas, camponeses e operários (mineiros, principalmente). Estes criaram a Central Operária Boliviana (COB), aberta também aos camponeses e movimentos populares. A COB esteve à frente de memoráveis greves e rebeliões.

Com o passar do tempo, o governo de Paz Estensoro (MNR) foi recuando da reforma agrária e estatização dos minérios, enfraquecendo o movimento popular por meio da cooptação, perdendo base popular e, finalmente, caiu. A burguesia desfere um golpe de Estado em 1964 (isto mesmo), instala-se uma ditadura militar, que durará até 1982. Seguem, pra variar, a aliança incondicional com os EUA, o desmonte das conquistas e programas sociais e a repressão para quem se opuser. Fortaleceu-se uma burguesia agroindustrial instalada na região de Santa Cruz de La Sierra, que fará oposição radical ao Governo Morales, até sua derrubada, em novembro de 2019.

Mesmo sob duras condições, os três setores do povo continuam criando suas formas de organização e resistência. Na década de 1970, surge um movimento indígena chamado Katarismo (homenagem ao líder indígena Tupac-Katari).  Além de movimento social, havia também um braço armado, do qual participou o vice-presidente de Evo, Álvaro García Linera.

Em 1979, os kataristas criaram a Confederação Camponesa, que ingressou na COB. Essa aliança operário-camponesa não produziu um casamento tranquilo, por conta da divergência relativamente a quem caberia o papel de vanguarda da Revolução na Bolívia.

A aplicação das medidas ditadas pelo Consenso de Washington e pelo FMI: privatizações, abertura dos mercados, arrocho, foram enfraquecendo a classe operária e a hegemonia entre os setores do povo foi para as mãos indígenas. Em 1995, é fundada a Assembleia pela Soberania dos Povos, depois transformada em Movimento ao Socialismo (MAS), liderado por Juan Evo Morales, líder sindical cocalero.

O MAS e a Busca do Bem Viver

O Movimento ao Socialismo tem como objetivo revolucionar a sociedade em vista de construir um novo modo de vida, chamado Bem Viver. Este tem como referência a vida comunitária dos povos originais. O Bem Viver considera que desenvolvimento não é sinônimo de crescimento econômico, repudia o consumismo e define a felicidade como a satisfação das necessidades materiais básicas e espirituais, não se confundindo com a posse de bens materiais. As relações humanas têm como base a igualdade e a solidariedade, a partilha do ter e do saber. A terra não deve ser tratada como meio de produção, como um instrumento a ser dominado para dela se extrair as riquezas, e sim como nossa Mãe, aquela que nos proporciona e sustenta a vida.

O problema é como construir o Bem Viver num país em que o poder econômico está nas mãos da minoria associada e dependente do capital internacional. Pense num desafio para Evo e seus companheiros. Vamos dar a palavra a Juan Carlos Pinto Quintanilla, que foi guerrilheiro do Movimento Tupac-Katari: “Passamos a construir a ideia de um Estado Plurinacional e nos demos conta de que a proposta é dificultosa porque não saímos do capitalismo, não somos hegemônicos – apesar de estarmos no governo – e seguimos dependendo do mercado internacional. Na verdade, para chegar ao governo da República, fato que aconteceu em 2006, o MAS passou a priorizar o caminho institucional a partir dos anos 2000, deixando em segundo plano a organização comunitária . Com isso, canalizou os sonhos e a esperança milenares, e o povo exultou com a eleição de um dos seus para chefe de Estado.

E agora?  O governo de Morales nacionalizou os setores estratégicos (gás e petróleo), ampliou os serviços públicos e planejou superar a condição da economia fornecedora de produtos primários. Para isso, precisaria promover a industrialização. Com quem contaria, de imediato, para esse fim? Os aliados da Aliança Bolivariana (ALBA) não tinham como ajudar nesse sentido. Cuba contribuiu muito para a erradicação do analfabetismo e com a saúde. Mas, para fins de industrialização, a solução definida foi buscar a parceria do empresariado local e de empresas internacionais, embora sob o controle do Estado nacional.

Garcia Linera explica, já no primeiro mandato: “…É um mandato da nação, não um mandato de classe, nem de uma região ou grupo étnico; é a nação que se coloca de pé. É um mandato só comparável ao de uma revolução…”. Que revolução, se não consegue fugir dos mecanismos do mercado globalizado, busca investimentos privados do exterior para melhorar a infraestrutura e promover a industrialização e pede a parceria do empresariado local?

Em 2005, representantes do governo se reúnem com a Confederação dos Empresários Privados, convocam-nos a participaram da construção da “Nova Bolívia” e pedem sua assessoria ao projeto econômico. Linera esclarece que não se trata de rendição, mas é o que é possível no momento. Nas suas palavras, um “capitalismo andino-amazônico”, contraposto ao neoliberalismo e reunindo elementos da economia comunitária indígena. Seria uma etapa intermediária ao Socialismo do Bem Viver.

Tudo Muito Contraditório

Em 2011, parte do movimento indígena fica bastante insatisfeita com a decisão do governo de construir uma estrada que atravessaria a reserva Tipnis, cancelada após uma marcha de 65 dias a La Paz. Uma fratura importante. Quanto aos empresários, parte deles aceitou a parceria, algumas empresas estrangeiras também, interessadas na exploração de minérios. Quanto às condições impostas pelo governo boliviano, sempre houve muita pressão, inclusive pedidos à Embaixada dos Estados Unidos para intermediar negociações com o governo. Certa vez, o embaixador respondeu que negociação com esse governo não aconteceria sem dinamite na rua… A dinamite foi lançada.

Não há dúvida de que o governo do MAS melhorou o nível de vida do povo nos aspectos econômico, social e cultural. Inegável a valorização da cultura originária dos povos indígenas, a concessão de autonomia política relativa, até o reconhecimento oficial da justiça originária, a revisão de contratos internacionais. Reduziu os níveis de pobreza por duas maneiras: incentivo econômico para empreendimentos comunitários e individuais também e programas sociais de redistribuição de renda semelhantes aos implantados pelo PT no Brasil. Morales chegou a ter apoio de 80% da população, mostraram as pesquisas.

Em 2008, não houve dificuldade de conter a rebelião promovida pelos governadores (burguesia opositora) de Santa Cruz, Tarja e Beni. Por que foi diferente em 2019? Porque os povos originários não se levantaram em massa para defender seu governo?

As contradições acima citadas. Como o programa de governo diz que a Terra é Mãe e como tal deve ser cuidada, e continuo sangrando suas entranhas com a mineração que tantos males tem causado em todo o Continente?  Como decido rasgar uma reserva indígena com uma estrada que vai trazer resultados econômicos, sem consultar sequer os que serão atingidos? Incentivo a economia comunitária, mas também a individual? Inclusive, a partir deste estímulo, formou-se um conjunto de pequenos e até médio empresários bem sucedidos, que passaram a se opor ao governo com receio do fortalecimento da economia comunitária, pois seu desejo, agora, passou a ser se tornar grande empresário! O distanciamento das bases, priorizando a política institucional à organização popular.

Mas não houve crise econômica. Se o povo ganhou nos 13 anos de governo, o empresariado boliviano ganhou também. Porém, isso não é suficiente. A burguesia quer ter a propriedade e o controle dos bens de produção e o governo nas próprias mãos. E o que viria depois da etapa intermediária anunciada por Linera?

Foi só esperar o enfraquecimento e aproveitar um deslize qualquer. Este foi a tentativa do quarto mandato a qualquer custo. Mesmo depois de perder um referendo popular neste sentido. Apela-se então à Corte Constitucional? Que é isso, companheiro? “Quem manda não é o povo”?

Resultado

O roteiro já conhecido que não traz nenhuma dificuldade aos bons cineastas para fazerem um novo filme e se candidatarem ao Oscar. Humilhações, mortes, prisões, exílio… Nada de bom? Tirar as lições, porque a História não tem fim.

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