DESIGUALDADE. Nos Estados Unidos, saúde é tratada como um privilégio de quem pode pagar por ela (Foto: Getty Images)
Por Celina Guimarães
De Nova Iorque para A Verdade
INTERNACIONAL – O elefante na sala… É a expressão que se usa aqui nos Estados Unidos para falar daquele problema que todo mundo está vendo mas faz de conta que não existe. Agora é impossível não ver esse elefante sentado, bem à vontade, no sofá da sala. A pandemia de Covid-19 tornou mais óbvio do que nunca a inviabilidade do sistema de saúde dos Estados Unidos. Quando os restaurantes fecharam, os escritórios também, muitas empresas mandaram gente embora. Em duas semanas, dez milhões de cidadãos entraram na fila do seguro-desemprego. E o duro é que quase todos, ao perder o emprego, perderam também o seguro de saúde. Ficaram sem trabalho e sem ter como se tratar caso o coronavírus bata à porta.
É um espanto para qualquer europeu ou para os canadenses, que estão mais próximos, tomar conhecimento da forma como funciona (ou não funciona) o sistema de saúde do chamado país mais rico do mundo. A saúde, aqui, é tratada como um privilégio de quem pode pagar por ela. Quem não pode, quando a situação aperta, corre para a emergência, porque ali os médicos são obrigados a atender sem perguntar por carteirinha de seguro. Por isso é fácil entender como o senador socialista de Vermont, Bernie Sanders, conseguiu tanto apoio até nos estados de maioria republicana. Ele briga, e brigou, a vida inteira por justiça social, e fez do Seguro para Todos a grande marca da campanha dele.
Sanders foi prefeito de Burlington, em Vermont, antes de seguir para o Senado, em Washington. Vermont é um estado bem fora da curva estadunidense. Chegando lá você se surpreende com a composição partidária das câmaras locais. Não são apenas republicanos e democratas. Existem representantes de diversos partidos, incluindo diferentes legendas de esquerda. Vermont também é o único estado da federação que adota um sistema particular de distribuição da verba de educação. Pelo país afora, você paga imposto para o setor e aquele dinheiro é aplicado no seu condado. Os condados mais ricos, claro, têm escolas públicas mais bem aparelhadas. Já os mais pobres… Por isso, Vermont recolhe o bolo todo e distribui igualmente. É uma forma de tentar combater uma das tantas sequelas da história do racismo nos Estado Unidos.
Saúde para poucos
E é esse racismo estrutural que está expondo com mais força ainda as mazelas do sistema de saúde do país. Em coletiva, na Casa Branca, o presidente Donald Trump citou as primeiras estatísticas sobre o impacto da Covid-19 nas comunidades afro-americanas. Os negros estão morrendo até seis vezes mais que os brancos. Chicago é um exemplo: os negros são apenas 30% da população da cidade, mas já registraram 68% das mortes da pandemia.
Trump se perguntou, diante do mundo: por que será? E pediu ao doutor Anthony Fauci, imunologista e diretor de Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde, que explicasse. Ele não teve dúvida. Diante do Presidente, Fauci disse que os negros têm índices mais altos de doenças crônicas como diabetes, hipertensão, asma… condições que agravam a saúde do paciente com coronavírus.
Trump pareceu surpreso. Mas o doutor Fauci poderia ir mais longe e tentar explicar porque essas incidências tão altas. A alimentação é uma delas. A maior parte dos negros, nos Estados Unidos, fazem parte da camada mais pobre da população que não tem acesso à comida de qualidade, mora perto de grandes portos ou terminais de carga, onde a poluição provoca alta incidência de asma, e assim por diante. Para agravar a situação, em geral também não têm seguro de saúde para frequentar o médico regularmente e prevenir que as doenças se instalem. Aqui, a chamada medicina preventiva não é para todos.
Mas não é só isso. Quem continuou trabalhando durante a pandemia, fora dos hospitais? Quem faz comida, quem faz entrega, os caixas de supermercado… São ocupações com salários mais baixos. E por aí vai. O governador de Nova Iorque prometeu viabilizar um número maior de testes de Covid-19 nas áreas mais pobres do estado e nas comunidades majoritariamente afro-americanas.
Andrew Cuomo também está tentando implementar um “meio SUS”, digamos assim. Desesperado com a falta de equipamento de proteção para os médicos e de respiradores mecânicos para os pacientes, ele decidiu unificar os hospitais públicos e privados. Anunciou que eles vão trabalhar juntos na compra de materiais e na distribuição de pacientes para evitar superlotação. E foi mais longe: baixou um decreto dando ao governo do Estado o poder de tomar respiradores dos hospitais que tenham mais do que o necessário no momento, e levar para os que estão precisando desesperadamente.
Na hora que a situação apertou, nada de estado mínimo, mão invisível da economia e outras palavras de ordem do neoliberalismo. Ao menos não no Estado de Nova Iorque. Na Casa Branca, a história é outra.
O presidente Donald Trump enfrenta as urnas em novembro e não quer arriscar votos. Ao mesmo tempo, não cede na ideologia. Já foi chamado de garoto propaganda da indústria porque vive citando os nomes das empresas que estão fazendo máscaras ou desenvolvendo testes. Até mostrou um para os jornalistas. Ele poderia ter usado uma lei que dá ao Presidente poderes de determinar que as indústrias produzam esse ou aquele produto em situações de crise. Não usou mão dela. Apenas ameaçou para ganhar a queda de braço com uma montadora que, afinal, começou a fazer respiradores. Eles só ficam prontos em junho, quando, espera-se, a crise já tenha passado. Com quantos mortos, talvez não se saiba nunca. Quantos terão morrido por causa do corona sem que ninguém saiba?
Mas o que a população sabe, e a crise denunciou, é que a saúde como mercadoria não garante a vida de ninguém. Bernie Sanders abandonou a tentativa de se tornar o candidato democrata a presidente. Matematicamente, já não era possível chegar lá. Mas o nome dele continuará nas cédulas dos mais de vinte estados que ainda têm primárias. E ele deixou claro que a intenção é ganhar mais delegados para ter poder de barganha na convenção do partido e exigir a inclusão de alguns itens essenciais na plataforma da campanha democrata. E eu apostaria outra cartada: depois de correr o país falando sobre a saúde como um direito de todos, e ouvindo reações positivas ao discurso, ele garantiu: “nós vencemos a disputa ideológica”. Agora, ele vai voltar ao Senado e é lá, no Congresso, que vai brigar por uma lei que transforme o comércio da saúde em um serviço de primeira necessidade.