Dany Oliveira, Júlia Soares, Priscilla Santos e Thayná Carvalho
SÃO PAULO – Nascido em Amarante, Piauí, Clóvis Steiger de Assis Moura (1925 – 2003) foi sociólogo, jornalista, historiador e escritor. Em sua trajetória intelectual e política, contribuiu com o pensamento da cultura popular brasileira e, baseado na teoria marxista, analisou a luta de classes no sistema escravista e seus desdobramentos na construção social do Brasil. Clóvis trabalhou como jornalista quando esteve na Bahia, em 1947. Neste período, trabalhou no Jornal O Momento, diário do Partido Comunista do Brasil (PCB), aprofundando seu contato com a teoria marxista e filiando-se ao partido em 1945. Clóvis Moura foi um dos deputados cassados quando da cassação do PCB 1947, juntamente com Carlos Marighella e Jorge Amado. Em 1962, alinhou-se com as posições do PCdoB, formulando sobretudo o pensamento teórico do movimento negro, contribuindo com a fundação tanto do MNU quanto da UNEGRO.
A “Quilombagem” Como Práxis Negra
A historiografia burguesa, dita oficial, diz que os negros foram passivos no período de escravidão no Brasil. Clóvis Moura, em seu primeiro livro, Rebeliões da Senzala (1959), apresenta o caráter ativo que os negros tiveram em todo país em lutas e insurgências para conquista de sua liberdade. O projeto de desvendar a verdadeira história de luta do povo negro encontrou resistências até mesmo entre a intelectualidade branca, dita de esquerda. Caio Prado Júnior, por exemplo, que tentou convencer o jovem Clóvis Moura a se dedicar a outros temas, alegando entre que eram pouco relevantes as pesquisas sobre as rebeliões escravas e a cultura negra.
Clóvis Moura demonstrou que as classes dominantes utilizaram várias estratégias para impedir revoltas e explorar cada vez mais o povo negro. Destruíram quilombos, assassinaram e esquartejaram lideranças que tiveram seus corpos expostos em praça pública. Apesar dos escravagistas utilizarem os negros como força para as lutas em seus conflitos, de maneira muito significativa, principalmente nas lutas contra a coroa, sempre tendo promessas de libertação ao final, que nunca eram cumpridas, sempre se negaram a armar os escravos, pois sabiam que esses poderiam utilizar as armas em rebeliões e, consequentemente, se libertarem.
Trabalhavam constantemente na desqualificação dos negros. Não os deixavam se vestirem como os brancos e construíam uma imagem do negro como um verdadeiro animal, quando não, pior. Faziam de tudo para criar situações de terror com os rebeldes para que os outros escravos também não se rebelassem.
Os negros, por sua vez, tinham diversas estratégias para lutar pela liberdade. Organizavam grandes fugas, construíam grandes quilombos para viverem em comunidade, tendo sua própria organização política e econômica. Os escravos subverteram o sistema escravista, seja de maneira individual, fugindo para as matas, ou coletiva, através do aquilombamento. Os quilombolas se utilizavam do terror contra seus senhores, criando as condições para a fuga. Os escravos também estiveram presentes em quase todos conflitos armados vividos durante o império, defendendo um dos lados em troca da promessa da liberdade.
O Racismo Como Arma Ideológica de Dominação
Clóvis Moura insiste em suas pesquisas e desenvolve a obra, Sociologia do Negro Brasileiro (1988), em que faz uma importante crítica aos conceitos utilizados pelas ciências humanas, sobretudo no campo das ciências sociais. Aponta a ideologia colonialista que atravessa a argumentação dos escritores dessa área, ideologia essa voltada à dominação de uma população dita ‘primitiva’.
Apontando as contradições e se opondo à literatura hegemônica, Moura analisa o lugar que o negro ocupa na sociedade brasileira e os diversos impactos dos mais de três séculos de escravização no Brasil. Seus trabalhos denunciam a base racista da historiografia brasileira que favorecia a manutenção da escravatura e do neocolonialismo e posteriormente ao desenvolvimento do capitalismo, tentando justificar um projeto de branqueamento da população.
Moura desmascara ainda a falsa narrativa de um país com bases em uma democracia racial, como afirmam os estudos de Gilberto Freyre, que, apesar de trazer debates pautados na questão de classe, exalta a harmonia racial, sendo seu trabalho de grande influência para a sociologia e a historiografia brasileira. Antes do trabalho do piauiense, a questão da população negra não era vista como um importante objeto do conhecimento científico, o que também demonstra uma faceta do racismo, que era sustentada em uma falsa neutralidade científica.
Clóvis também se dedica a mostrar como esse imaginário sobre o negro foi construído através de um reflexo da estrutura de nossa sociedade, tanto para os estudos ditos acadêmicos quanto para a literatura. O autor destaca que, para modificar essa situação de racismo e preconceitos no pensamento brasileiro, é necessário ir além de estudos e pesquisas, mas construir uma práxis política. Em sua proposta, seriam esses trabalhos que ajudariam a formar uma prática social capaz de romper a segregação invisível mas operante em que vive a população negra no Brasil.
As Injustiças de Clio
Um dos mais rigorosos trabalhos de Clóvis Moura é As Injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira, de 1990. Uma análise do método histórico com o objetivo de localizar a maneira como o negro é descrito e simbolizado na historiografia brasileira através das obras de importantes historiadores – brasileiros e estrangeiros – que são referência para o pensamento da construção do Brasil. Autores como como Frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, Robert Southey, Varnhagen, entre outros. Moura classifica-os como intelectuais orgânicos do sistema escravista que, por sua vez, tiveram a chancela e o patrocínio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 pelo poder monárquico constituído.
Em sua análise sociológica da rebelião escrava, Clóvis Moura demonstrará que as ações dos negros contra a ordem escravista foram coordenadas e politicamente orientadas por eles mesmos. Ao invés de massa disforme, sem vontade própria (a não ser a de seu senhor), os escravos constituíram-se como força social e política, orientados por valores, práticas e sentidos, dentro das condições históricas e materiais da sociedade brasileira. Dentro deste processo, ele destaca como sujeito histórico o quilombola, motor de transformação política e social em resistência ao sistema vigente.
Por meio das repetições de posições idealistas em relação à população negra e não-branca, impregnadas de ideologias colonialistas, fica evidente em cada autor criticado por Moura, que o preconceito contra o negro não se dissolveu com o passar do tempo. Ao contrário, os estereótipos, a falta de base empírica ou científica, as mentiras – como a criação de um suposto suicídio de Zumbi, posteriormente refutado e comprovada a forma cruel de seu assassinato – são marcas da historiografia brasileira desmascaradas por Moura.
O sociólogo evidencia no romance de Euclides da Cunha o caráter consensual com o pensamento colonialista dos intelectuais do período e, em suas palavras, diz que o autor de Os sertões é “ideologicamente alienado, mas sensível aos problemas da nação” (Moura, 1964, p.10).
Na tentativa de se institucionalizar um perfil branco para o brasileiro, o negro é apresentado como um ser não pensante na historiografia tradicional, incapaz de produzir transformações na realidade, animalizado e, consequentemente, responsável pelas condições de subalternidade da sociedade e pelos fracassos econômicos do país.
O Negro e a Luta de Classes
A existência da oposição entre senhor e escravo impulsiona Moura a pensar a legítima luta por libertação do negro com a luta universal por libertação e a formação do Estado brasileiro. Ele aponta que o modo de produção escravista tem como principal contradição os senhores e os escravos. Descreve ainda como o escravismo, do modo que era constituído, levou o Brasil à estagnação econômica e social e por sua vez deixou, colônia e colonizadores, dependentes da Inglaterra. O autor divide o escravismo em pleno e tardio, sendo o primeiro período o da consolidação do modo de produção escravista; o segundo o cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista.
As teorias eugenistas que inspiram a ciência e as políticas no Brasil pós abolição aparecem no processo de miscigenação e hierarquização das etnias. A marginalização do negro e sua cultura é estruturada de forma que o negro morra, ou seja expulso da sociedade brasileira. A necessidade de domesticar a fala dos negros e a divisão entre os letrados – pequena parcela de negros da classe média – e os proletários, jogados às franjas da sociedade. É um aspecto ignorado nos estudos da posição social do negro a falta de políticas de reparação, a qual é detalhada por Clóvis Moura para que possamos pensar o racismo e suas características estruturais no Brasil.
As tentativas de apagamento da história e da luta do povo negro são denunciadas em toda obra e atuação Clóvis Moura. Fiel ao seu objeto inicial de pesquisa, ele apresenta as resistências negras pós abolição. A criação de imprensas negras, como A voz da raça e O clarim da alvorada e o destaque para os diferentes intelectuais e atores políticos negros que surgiram na organização da república do Brasil. Para ele a destruição da memória do negro é uma das estratégias violentas de dominação do povo e faz-se necessário o resgate e reconstrução histórica da mesma. Desde seus primeiros trabalhos, apresenta a intrínseca articulação entre as categorias raça e classe para construir uma luta emancipatória para o Brasil.
Clóvis Moura se utiliza do marxismo para radicalizar a práxis como crítica aos pensadores intelectuais, dentro e fora da academia, na militância e em todo seu percurso político, marcando nossa literatura com sua singularidade e a urgência em pensar o aquilombamento de toda sociedade, considerando o negro como sujeito histórico e atuante em toda história do Brasil.
Em 23 de dezembro de 2003, aos 77 anos, morre o intelectual quilombola. Suas últimas ocupações foram os trabalhos desenvolvidos junto ao Movimento Sem Terra (MST) e a escrita do Dicionário da escravidão negra no Brasil. Trabalho com mais de 800 verbetes, mas ele não pode ver a publicação da obra, ocorrida em 2004. Conhecer sua obra e sua luta é fundamental para interpretação e atuação em liberdade do povo brasileiro.