José Levino
PERNAMBUCO – Anualmente, no mês de maio, o povo xukuru de ororubá realiza uma Assembleia Geral no seu território situado na Serra do Orurubá, Município de Pesqueira (PE). Neste ano, a Assembleia não se realizará, pelo menos no mês tradicional, em virtude da pandemia do coronavírus, que afeta todos os povos do planeta.
Em 2019, o tema da Assembleia, que reuniu cerca de duas mil pessoas (além das comunidades xukurus, havia representantes de outros povos indígenas e movimentos sociais de Pernambuco e de outros estados) foi “Em Defesa da Vida, somos todos Xicão”. Na fala de abertura, saudando os presentes, o cacique Marcos afirmou: “Esta Assembleia não é só do povo xukuru, mas uma assembleia popular, revolucionária, que se abre para que possamos construir um país que contemple toda a diversidade existente”. Vamos conhecer um pouco a história desse povo.
Xicão, Símbolo de um Povo
Em relação ao tema da Assembleia de 2019, que foi 19ª, perguntei a várias lideranças comunitárias o que significa ser Xicão, ouvindo as seguintes respostas: “É não ser individualista, é não ter apego a dinheiro e bens materiais, é não gastar com coisas banais, é lutar pelo bem comum, é honrar o sangue derramado, é não desistir nunca, é dizer ao povo que avance e avançar junto com ele”.
Os colonizadores portugueses ocuparam o território xukuru a partir do século 16. A extinção desse povo foi decretada pelo imperador Pedro II, em 1879. Entretanto, a extinção não aconteceu de fato. Houve dispersão, mas se manteve sempre a vontade e a esperança de reunião e retomada do território sagrado.
O guerreiro que viria liderar a retomada nasceu no ano de 1950, em Pesqueira, filho de Cícero Pereira de Araujo e Quitéria Maria, foi batizado como Francisco de Assis Araújo. Na juventude, tornou-se caminhoneiro, mudou-se para São Paulo e percorreu o Brasil durante três anos. Certo dia, resolveu voltar para seu povo e mobilizá-lo pela retomada do território. Era o ano de 1986. Xicão não se preocupou apenas com seu povo. Foi um dos fundadores e dirigentes da Articulação dos Povos Indígenas do Leste e Nordeste (APOINME) e participou ativamente da luta vitoriosa para inserir na Constituição Federal de 1988 a garantia da terra aos povos originários.
Apesar de ser uma norma constitucional, sua concretização não tem sido fácil. O Art. 67 das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88 determina que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Com a promulgação, em 1988, a conclusão deveria ter se dado em 1993. Passados 32 anos, apenas uma parte dos territórios reivindicados foi homologada pela Presidência da República, nenhum centímetro, por sinal, no atual governo.
As demarcações têm sido resultado de luta árdua, com muitos entraves burocráticos, judicialização e derramamento de sangue. Foi o caso de Xicão Xukuru, que tombou na cidade de Pesqueira, no dia 20 de maio de 1998, vitimado pela bala de um pistoleiro a mando de fazendeiros como vingança pela demarcação das terras em 1995, num total de 26.980 hectares.
O sucessor de Xicão é seu filho, Marcos, com o apoio de sua mãe, dona Zenilda, anciã admirada e respeitada por todos, que a chamam de Mãe Sacarema. Mas a direção é coletiva, exercida por uma Comissão Interna formada por representantes das 23 aldeias. Existe o Conselho dos Professores Indígenas Xukuru do Ororubá, responsável pela educação, e organização da juventude, chamada Poya-Limolaygo (Pé no Chão).
O povo xukuru não recuou e continua desenvolvendo a comunidade, cuidando da educação e da saúde dos seus filhos, produzindo para manter suas famílias e comercializando o excedente, resgatando sua cultura, suas tradições. Quando algum problema ou obstáculo surge no caminho e a aflição pensa em baixar sobre o povo, este lembra a palavra de ordem do líder plantado no território sagrado e que não deixa de produzir novos frutos: Diga ao Povo que Avance! E a resposta vem uníssona: Avançaremos.
No Combate a Mais um Inimigo
Não bastassem os ataques constantes dos fazendeiros, madeireiros, garimpeiros com a omissão ou mesmo o beneplácito do governo federal e governos estaduais, chega mais um inimigo, o coronavírus. Por já contarem com certo nível de organização, o povo Xukuru de Ororubá está sendo afetado como todo o povo pernambucano, e ainda contribuindo com a sociedade em geral, pois integrantes da Poya-Limolaygo atuam na cidade de Pesqueira, conscientizando as pessoas sobre os cuidados para evitar a propagação da doença, inclusive, distribuindo máscaras. Em comunicado, afirmam: “Nós, jovens xukuru, entendemos que vivemos um momento em que é necessário nos doarmos em prol dos outros, que todos nós, enquanto filhos e filhas desta terra, precisamos nos dar as mãos. Que sejamos firmes em defesa da vida”.
Há regiões do país, especialmente na Amazônia, onde, na situação em que vivem os indígenas, a propagação do coronavírus pode ser fatal para toda a população. A pandemia não está contendo sequer as ações de devastação promovida pelos exploradores. É tanto que o Ministério Público Federal acaba de ajuizar ação para que o Judiciário determine ao poder Executivo a adoção de medidas capazes de impedir a devastação em dez pontos onde a ação criminosa é mais nefasta. No texto da petição, os procuradores afirmam: “A destruição da Floresta Amazônica está em franca expansão, sem nenhum sinal de abalo relacionado à pandemia de Covid-19”.
União de Todo o Povo
Quando as lideranças xukurus abrem sua Assembleia anual para todos os setores do povo, estão mais do que certas. A luta isolada de uma categoria, de um setor, por mais forte que seja, não conseguirá reverter esse modelo econômico que concentra riqueza para a minoria ao custo do sofrimento, da pobreza, da miséria da maioria do povo, que a pandemia só vem agravar.
Mudanças estruturais só virão com o Poder Popular, que só ocorrerá com a união de todos os setores do povo, separados historicamente pelas classes dominantes. A partir de sua união em torno de problemas comuns (a falta de demarcação, por exemplo, afeta indígenas e quilombolas), a concentração da propriedade da terra nas mãos de grandes empresas gera uma legião de sem-terra e de famílias camponesas com pedaços de terra insuficientes para sua manutenção. O agronegócio exportador produz a escassez e consequentemente a alta de preços, afetando os trabalhadores urbanos. Portanto, são tantos problemas comuns, que só falta consciência e clareza das lideranças para promoverem a união, não apenas em torno de lutas reivindicatórias, mas também na construção de uma economia popular fundamentada na inter-cooperação, nas trocas solidárias, no preço justo.
Só juntos, enquanto classe, as vítimas da opressão terão força para garantir mudanças estruturais que apontem para uma sociedade em que todos tenham vida, e vida em abundância, buscando o que une e respeitando o que separa para ir superando as diferenças por meio do diálogo e da persuasão. Não há outro caminho para chegar à vida que todos querem e chamam por nomes diferentes: a Terra Sem Males, o Bem Viver, o Socialismo, o Comunismo, a Vida Comunitária.