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terça-feira, 16 de julho de 2024

A transgressora Miss Biá: 60 anos de resistências em forma de arte

Morreu aos 81 anos o transformista Eduardo Albarella que inspirou gerações de jovens LGBTQIA+ através da Miss Biá-tá-tá. 

Thiago Anjos,
licenciando em Ciências Sociais e amante da arte drag-transformista.


Foto: Reprodução.

BRASIL – Surgida no Brasil nos anos 60, a arte transformista traz consigo uma nova forma de encarar as questões de gênero, expressão e sexualidade. Os artistas abordam um jeito novo de enxergar as construções de gênero, pois, mais do que um homem através dos estereótipos convencionais se “transformar” em mulher (ou vice-versa), a arte inquieta porque questiona tais estereótipos e mostra que o “ser mulher” ou “ser homem” vai, justamente, além dos estereótipos. Desse pressuposto, a arte converge diversas formas de expressão sobre o “feminino”, “masculino” e a própria relação entre gêneros, através, principalmente, da dança, atuação, improviso e canto. Dentro do transformismo, hoje muitos artistas que se identificam como Drag Queen e Drag King. 

No início dos anos 60, Eduardo Albarella, office boy, na época com 21 anos, ficou surpreso com todo o glamour visto ao assistir um show de dançarinas, entre elas a travesti Geórgia, num show de cabaré da noite paulistana. A partir daquele momento, decidiu que o palco seria seu lugar e com ajuda de uma amiga, conseguiu roupas, perucas e jóias para construir seu alter-ego inspirador: a Biá. O nome já era seu apelido devido a música “Biá tá tá”, cantada pela Carmen Miranda, e o miss é incorporado futuramente, após ser anunciada como “miss”. 

Foto: Reprodução.

Suas apresentações começam em casas de espetáculo, tendo sido convidada pela boate “La Vie En Rose” para sua primeira apresentação cantando a música “Diz que fui por aí”, da cantora Nara Leão. No final da noite, foi escolhida a melhor e daí começou a fazer outros trabalhos. Essa foi a primeira vez que ocorreu um show só com travestis e o acontecimento parou o trânsito da capital paulistana, pois muitos ficaram curiosos com o espetáculo. 

Com o interesse de alguns artistas e intelectuais, os shows, com muito brilho, orquestra e performances super produzidas, ganham espaço em boates e começam a surgir as primeiras boates LGBT’s. As casas exibiam espetáculos de interpretações das divas clássicas, como Diana Ross, Gina Lollobrigida, Judy Garland e, a preferida da Biá, a Liza Minelli. Porém, como fazer isso durante a ditadura (1964-1985), quando um homem (biológico) poderia ser preso por não estar portando trajes destinados ao gênero masculino? 

Assim como os homens e mulheres transsexuais e travestis, os artistas transformistas eram perseguidos e assediados pelos repressores do Estado. Eram comuns as abordagens policiais e prisões por “atentado violento ao pudor”, acusados de prostituição se vistos dentro da personagem, quando transitavam de uma casa de show à outra. Biá conta que não tinha como sair montada pelas ruas, no máximo conseguiria usar maquiagem, disfarçada por estar “vestido de hominho”. Em entrevista para Globo.com, relembra que “Tinha um delegado que era o tormento de todo gay, ele vinha aqui…e uma vez levou quase 600 presas” (se referindo ao delegado José Wilson Richetti, responsável por coordenar operações de “limpeza” em São Paulo).

Foto: Reprodução.

O trabalho era difícil e as perseguições muitas. O ator conta que nunca foi visto pela família, tendo que viver uma vida-dupla: de dia, jogava futebol com seus amigos e trabalhava nos escritórios; na noite, perdia sua timidez e medos encarnando a glamurosa Missa Biá, que só seria conhecida pela família mais de 50 anos depois, como conta o ator em entrevista para o Museu da Diversidade Sexual.

Com o aumento da censura dos “Tempos de Chumbo”, Eduardo pausa suas apresentações em seu alter-ego transformista e passa a ser apresentar como dançarino junto à vedetes. Depois de anos de repressão acirrada, os show voltam a acontecer mais livremente e o artista se torna um grande maquiador e estilista, conhecido pelas celebridades que entrevistava nos seus shows, interpretando uma sátira à apresentadora Hebe Camargo, para quem trabalhou como estilista por anos, chegando a ser premiado e ter seu vestido catalogado no Museu de Arte de São Paulo.

Falar da trajetória da Miss Biá é falar de muitas casas noturnas, como a Corinto, Medieval e a NostroMondo. Nessas boates, a grande Miss Biá levou alegria e inspiração por meio da sua arte e carisma para milhares de pessoas por diversas gerações nos mais de 60 anos de carreira. Em cada uma das diversas casas que surgiram, os LGBT+ e artistas da noite podiam sentir um gosto de liberdade e aceitação, um sentimento de irmandade os uniam onde apoio e resistência andavam juntos frente à um país dominado pela repressão e preconceito.

Vítima da COVID-19, aos 81 anos de idade, Eduardo nos deixou no dia 03 de junho, mês da celebração do Orgulho Gay. Sua partida foi marcada por agradecimentos e homenagens das suas parceiras de profissão.

Foto: Reprodução.

Na foto podemos ver (da esquerda pra direita) outros grandes ícones da noite LGBT: Silvetty Montilla, que faz 33 anos de carreira como ator transformista, apresentador e humorista esse mês; Lia Clark, Gloria Groove e Aretuza Lovi, todas cantoras que figuram entre as drags mais ouvidas do mundo. Biá também abriu portas para nomes como Alexia Twister, traço da persona do ator e dançarino Matheus Moreira; Márcia Pantera, drag queen, modelo e precursora do “bate cabelo”; a x-Queen, jornalista e modelo Ikaro Kadoshi e sua parceira, também apresentadora do reality “Drag Me as a Queen”, a maior cover da Lady Gaga do país, Penelopy Jean; que, embora sejam de diferentes épocas, foram todas inspiradas pela artista.

Como a própria e eterna Miss Biá disse em entrevista ao programa “Banheira com Montilla”: Se você tem glamour você nunca vai morrer [e] Enquanto existir um palco, uma plateia e uma luz acesa, jamais deixarei de brilhar! 

Sua luta e resistência se manterão vivos em todos jovens LGBTQIA+ e artistas transgressores que sonham e acreditam numa sociedade melhor e lutam pela garantia dos Direitos Humanos e pela liberdade. A arte tem caráter revolucionário e transgressor e sempre será uma das maiores formas de expressão, denúncia e resistência.

Foto: Reprodução.

“Eu tenho a impressão que as pessoas nascem com alguma missão, então eu nasci pra ser a Miss Biá!” IIIIIIIAAAAW!

Em memória do grande Eduardo Albarella e de sua eterna Miss Biá. Gratidão.

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