Marcella Mahara
RIO DE JANEIRO – Quantos de nós não possuímos uma relação profunda com a música brasileira? Isso porque nos enxergamos nessas composições, uma vez que refletimos a variedade cultural presente ao nosso redor. Além disso, a opressão e a desigualdade nos atingem cotidianamente. Dessa maneira, ao escutar, cantar e dançar a música brasileira, nos sentimos unidos, nos sentimos profundamente brasileiros e isso por si só é uma confusa junção de identidade, amor, tristeza e revolta.
Ao passear por letras de algumas composições, é possível identificar o retrato da desigualdade social sempre explícita em nosso país. Veja, por exemplo, Pedro Pedreiro, de Chico Buarque:
“Pedro pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã, parece, carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem / De quem não tem vintém / Pedro pedreiro está esperando a morte / Ou esperando o dia de voltar pro norte / Pedro não sabe, mas talvez no fundo / Espera alguma coisa mais linda que o mundo / Maior do que o mar / Mas pra que sonhar / Se dá o desespero de esperar demais…”.
Ao longo do século 20, milhares de brasileiros de todas as regiões se deslocaram de suas cidades e estados em busca de trabalho. Pedro, personagem da composição de Chico, é mais um trabalhador do Norte ou Nordeste do Brasil, mais uma das muitas pessoas que precisaram migrar para as metrópoles em busca de uma melhor condição de vida. Entretanto, essa melhoria nunca vem. Por isso, a música enfatiza que Pedro permanece esperando e carece de esperar.
A promessa de uma vida melhor não chega porque, diante do sistema capitalista, um sistema de barbáries, os trabalhadores são abandonados pelo Estado, que está a serviço apenas da burguesia, dos grandes empresários e banqueiros. Um exemplo atual desse abandono são os trabalhadores, em total desespero, se expondo às aglomerações nas filas da Caixa Econômica durante a pandemia, esperando um auxílio de apenas R$ 600, que muitos, inclusive, ainda não conseguiram receber. Em síntese, aos pobres em nossa sociedade é dada somente a oportunidade de espera e assim permanecem, esperando aflitos até o fim de suas vidas.
Já na composição Salve as folhas, de Gerônimo, gravada por artistas como Gal Costa e Maria Bethânia, presenciamos os dizeres da língua yorubá “KÒ SÍ EWÉ, KÒ SÍ ÒRÌSÀ”, que significa “Se não há folhas, não há orixás”. Desse modo, a letra remete à sacralidade com a qual os rituais de origem africana enxergam o uso e a existência das folhas e ervas, fazendo uma referência ao Orixá Aroni, detentor do segredo das plantas medicinais.
“KÒ SÍ EWÉ / KÒ SÍ ÒRÌSÀ / Euê ô / Euê ô orixá / Sem folha não tem sonho / Sem folha não tem festa / Sem folha não tem vida / Sem folha não tem nada / Eu guardo a luz das estrelas / A alma de cada folha / Sou Aroni”.
Sem folha, não há ritual. Sem natureza, não há vida. Da mesma forma podemos remeter esse olhar aos povos indígenas, que enxergam a natureza como parte de si próprios. Já para o capitalismo, a natureza é uma fonte apenas de lucro, uma forma de enriquecer uma minoria rica, deixando as populações cujas existências contrariam essa postura sob constantes ameaças. Para o capital não há folha sagrada, não há vida sagrada, há apenas o lucro e a exploração. Esses sim, sagrados demais para os seus perversos mantenedores.
Por último, mas não menos importante, cito um trecho da canção Toque de São Bento Grande de Angola, inspirada no toque de capoeira dos negros escravizados, composta por Paulo César Pinheiro, um gigante do samba nacional:
“Meu avô já foi escravo / Mas viveu com valentia / Descumpria a ordem dada / Agitava a escravaria / Vergalhão, corrente, tronco / Era quase todo dia / Quanto mais ele apanhava / Menos ele obedecia / Quando eu era ainda menino / O meu pai me disse um dia / A balança da justiça / Nunca pesa o que devia / Não me curvo a lei dos homens /A razão é quem me guia/ Nem que seu / avô mandasse / Eu não obedeceria”.
Os negros escravizados, ao contrário do que nos fazem acreditar nas escolas e livros didáticos, não foram pacíficos à escravização. Pelo contrário, houve constante luta e resistência. Os quilombos são prova disso. Na época, eram uma forma de refúgio e luta contra os senhores escravistas. Além disso, nos quilombos preparavam-se ataques e seus integrantes tinham contato com insurreições negras urbanas. O Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi, foi um imenso símbolo de resistência. Hoje em dia, os quilombos permanecem vivos e preservam os saberes ancestrais e manifestações culturais afro-brasileiras.
A capoeira era uma forma de luta contra as opressões. Por isso, começou a ser reprimida e seus praticantes eram perseguidos pelos senhores brancos. A música de Paulo César Pinheiro deixa isso explícito. Toda a letra é um grito contra a hierarquia, a violência e a lei dos ditos senhores. Nos dias atuais, os senhores são outros, entretanto muito similares. Continuam relegando a população negra à marginalidade.