Enquanto a imensa maioria do povo brasileiro sofre com uma das cargas tributárias mais pesadas e injustas do mundo, deputados querem conceder isenção fiscal ampla, geral e irrestrita às igrejas mais ricas do país.
Por Heron Barroso
Rio de Janeiro
BRASIL – Esta semana, ganhou repercussão pública um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional em 16 de julho que, caso seja sancionado na íntegra pelo presidente da República, levará ao perdão de dívidas de igrejas com a União que chegam a mais de um bilhão de reais. A proposta contou, inclusive, com o voto de alguns partidos e parlamentares “de esquerda”, que argumentaram a defesa da liberdade religiosa para justificar suas posições.
Originalmente, o projeto de lei em questão (PL 1.581/2020) tratava de renegociações de precatórios (dívidas do governo cobradas pela Justiça). Porém, por articulação da chamada “Bancada da Bíblia”, foi incluído um artigo (na verdade um contrabando, o famoso “jabuti”), por proposta do deputado David Soares (DEM-SP), que livra as igrejas da lista de instituições obrigadas a pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), imposto cobrado sobre o lucro líquido de empresas e entidades privadas, e anistia as multas cobradas pela sonegação desse imposto. O deputado é filho do milionário R.R.Soares, que fez fortuna através da Igreja Internacional da Graça de Deus.
As dívidas das igrejas com a União são resultado de multas aplicadas pela Receita Federal às instituições “religiosas” que estavam pagando seus membros sem o devido recolhimento dos tributos devidos. Para a Receita, o que tem ocorrido em várias dessas “igrejas” é a distribuição ilegal de lucros entre seus chefes, uma vez que, teoricamente, são instituições sem fins lucrativos.
O que diz a lei brasileira
Segundo a Constituição Federal de 1988, igrejas e centros religiosos de qualquer religião possuem imunidade para impostos, sob a condição de que não tenham como objetivo o lucro. Isso ocorre para garantir a liberdade religiosa e que nenhum grupo de pessoas seja impedida de exercer sua fé por não conseguir pagar imposto. Até aí, é justo. É a mesma lógica aplicada às instituições de caridades, por exemplo. Porém, essa imunidade não significa que não precisem – e devam – pagar determinados tributos ao Estado, como taxas e contribuições, uma vez que “imunidade” não é o mesmo que “isenção”.
O que está na Constituição é a imunidade de igrejas e centros religiosos em relação ao pagamento de impostos. Entretanto, outros tributos e taxas, como a CSLL, para não serem pagos, precisam da concessão de isenção fiscal pelo poder público. E esse é o objetivo da emenda apresentada pelo deputado David Soares: conceder isenção fiscal ampla, geral e irrestrita a essas organizações. Logo, não é a defesa da liberdade religiosa que move a bancada evangélica e os defensores do PL 1.581/20 – entre eles alguns parlamentares do PT e toda a bancada do PCdoB –, mas a “liberdade” dos pastores e bispos de sonegar impostos e acumular riquezas às custas do erário e da fé das pessoas.
Ademais, é evidente que as verdeiras beneficiadas com a medida não são as pequenas congregações religiosas e as religiões de matriz africana, mas as grandes e poderosas igrejas católica e neopentecostais, que ficarão ainda mais poderosas com essa anistia fiscal.
Santos privilégios
De fato, nas últimas décadas é notório o enriquecimento de certas “instituições religiosas”, principalmente da Igreja Universal do Reino de Deus (Edir Macedo), da Igreja Internacional da Graça de Deus (R.R. Soares) e da Igreja Mundial do Poder de Deus (Valdemiro Santiago), em que pese a situação de pobreza de grande parte de seus fiéis.
Essas “igrejas” são hoje donas de redes de TV e rádio, jornais, portais na internet, fazendas, empresas de construção civil e até de partidos políticos, além de pesar sobre elas fortes suspeitas de participação em esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. A Igreja Católica também possui um patrimônio bilionário espalhado por todo país, que inclui emissoras de rádio e TV, diversas empresas, terras e milhares de imóveis. Segundo os únicos dados da Receita Federal disponíveis sobre o patrimônio das maiores igrejas do país, a renda delas subiu de R$ 13,3 bilhões, em 2006, para R$ 24,2 bilhões, em 2013, um aumento de quase 100%.
Na verdade, parte dessas instituições são centros religiosos apenas de fachada, pois, na prática, funcionam como grandes conglomerados econômicos, que usam de todo poder financeiro, político e ideológico que possuem para manipular a fé do povo e para impor suas pautas ao conjunto da sociedade, numa clara agressão a outro princípio básico da Constituição, que é o da separação entre o Estado e a religião.
Apesar disso, no ano passado, o presidente Jair Bolsonaro, o (falso) “cristão” que defende a tortura e o estupro de seus semelhantes, sancionou outra lei que permite que Estados possam prorrogar por até 15 anos a isenção das igrejas no pagamento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) em alguns serviços, como na conta de luz, por exemplo. Santo privilégio!
Enquanto isso, a imensa maioria do povo brasileiro sofre com uma das cargas tributárias mais pesadas e injustas do mundo, uma vez que os impostos no Brasil são indiretos e cobrados principalmente sobre o consumo. O resultado é que os preços dos principais produtos consumidos pelos trabalhadores em nosso país são fortemente afetados pelos impostos: leite (18,65%), arroz (17,24%), feijão (17,24%), carne (29%), ovos de galinha (20,59%), frango (26,8%), açúcar (30,6%), café (16,52%), gás de cozinha (34,04%), gasolina (61,95%), conta de água (24,02%) e conta de luz (48,28%).
“A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”
Dessa forma, é justo que igrejas e instituições religiosas multimilionárias continuem livres do pagamento de impostos num país que sofre com serviços públicos tão precários? É correto que o Estado brasileiro abra mão de bilhões de reais em arrecadação todos os anos, quando esse mesmo Estado afirma não ter recursos suficientes para continuar pagando um auxílio de 600 reais em plena pandemia?
Como já foi dito, não se trata aqui de liberdade religiosa – algo, aliás constantemente violado por certas correntes religiosas. Essa liberdade, precisa de fato ser defendida e garantida pelo Estado, pois é uma das bases de uma sociedade verdadeiramente livre e democrática. Para isso, aliás, o Estado precisa ser laico e garantir, de fato, a todos que queiram, o direito à religião que achar melhor, inclusive nenhuma.
A questão de essência é não permitir que falsos líderes religiosos permaneçam usando de seu poder político para garantir privilégios perante a lei, continuem enriquecendo ilícita e imoralmente às custas da fé legítima das pessoas, pregando voto de pobreza para os outros, enquanto adoram o bezerro de ouro acima de todo.
Reza a bíblia que Jesus de Nazaré disse certa vez que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus. Pois bem, os falsos profetas de hoje, pelo visto, esqueceram esse sábio mandamento cristão, e querem seguir operando o “milagre” de passar não somente o camelo pela agulha, mas seus jatinhos, coberturas em Miami, carros de luxo, relógios de ouro e tudo mais que o deus-dinheiro possa comprar.
“Então, retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o surpreenderiam nalguma palavra;
E enviaram-lhe os seus discípulos, com os herodianos, dizendo: Mestre, bem sabemos que és verdadeiro, e ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas a aparência dos homens.
Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não?
Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: Por que me experimentais, hipócritas?
Mostrai-me a moeda do tributo. E eles lhe apresentaram um dinheiro.
E ele diz-lhes: De quem é esta efígie e esta inscrição?
Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram.”Mateus 22:15-22