Rodrigo Souza
A Revolta da Cabanagem e demais movimentos populares no século 19 foram relegados pela historiografia oficial da burguesia como fatos históricos sem significância. Muitos historiadores abordam esses movimentos como acontecimentos que deram vazão à explosão de bestiais sentimentos e paixões das massas, como afirma Caio Prado Jr., em um dos vários destaques pertinentes na pesquisa historiográfica empreendida pelo professor Luís Balkar de Sá Peixoto em seu livro Visões da Cabanagem – Uma revolta popular e suas representações na historiografia.
A obra de Sá Peixoto, docente na Universidade Federal do Amazonas, aborda como o movimento cabano, que tem várias periodizações (dentre elas a mais comum é 1836-1837) foi registrado ao longo da história. Ora elaborado por membros ativos no acontecimento ou viajantes que testemunharam parte dele, ora revisitado por pesquisadores, mantendo, retocando e propondo discursos. Há, de maneira clara, uma postura hegemônica nos centros culturais dominantes do país de uma não abordagem significativa do movimento cabano, colocando-o constantemente numa categoria genérica facilmente encontrada em qualquer livro didático de história sob capítulos ou até pequenas notas como “Revoltas Regenciais”.
Apesar de algumas obras que buscaram produzir um relato “oficial” do acontecimento nortista, será só em 1942 que uma abordagem propriamente historiográfica é produzida por Ernesto Cruz, historiador paraense, no livro Nos bastidores da Cabanagem. Como toda e qualquer produção da história não tem isenção, nunca é purificada em suas linhas, nunca é solta do chão em que pisa o historiador, dos pensamentos e propensões que o atravessam, as produções demonstram tanto visões em que o movimento cabano não havia sido nada além de uma desordem por parte de malfeitores, quanto de “revolução popular”.
O que se diz sobre a Cabanagem ainda se encontra claramente em disputa e cria tensões sobre as origens do movimento, seus atores e suas aspirações. Tais tensões só serão dissolvidas através do estudo contínuo que, diga-se, cresceu nas últimas décadas, e da reflexão, da apropriação do processo ocorrido nos Estados do Pará e Amazonas, como parte fundamental de uma construção da identidade amazônica pelos seus estudiosos, também seus habitantes e, por que não, militantes que ainda hoje buscam a emancipação do povo.
Ou seja, é necessário despertar o interesse nortista por um capítulo que pode ser de grande relevância para firmar uma postura cada vez mais combativa dos povos da Amazônia, que resistem até os dias atuais.
Cabe refletirmos sobre os motivos deste pouco interesse em desenvolver análise sobre a Cabanagem. O professor Sá Peixoto, citando José Chiavenato, afirma que o estudo do movimento incomodava os grupos dominantes e era “um exemplo perigoso que precisava ser riscado da história”. Uma indagação proposta em Visões da Cabanagem é se, nos dias atuais, ela ainda representa algum tipo de perigo para os grupos dominantes de hoje.
Na abordagem registrada no século 19 encontramos, nas falas do general Francisco José Soares de Andréa, uma base largamente utilizada no período. O registro leva ao entendimento do movimento cabano não como algo oriundo da organização de uma luta popular, ou de lutas, no plural, mas sim de um aflorar da barbárie de uma massa selvagem, sem senso de civilidade e levada por instinto animalesco, ou seja, uma turba violenta.
Sá Peixoto destaca em sua produção um primeiro passo para além desta imagem que ficou cristalizada da Cabanagem, apontando Moreira de Azevedo, um dos autores estudados, o qual se utilizou de um termo interessante, quase familiar, a “luta de castas”. Pouco a pouco, a abordagem da problemática paraense se deslocava para o campo de um movimento que justificou sua violência por conta do histórico tirânico e dizimador que se arrastava desde a chegada portuguesa às terras indígenas na criminosa colonização.
Portanto, a visão sobre os cabanos na virada do século 20 era de que estaríamos diante de um ato de vingança instintiva. Não se pode dizer que tal elemento possa ser descartado. As feridas da colonização e escravização indígena ainda sangram, sem sombra de dúvida.
A história permanece desafiada a demonstrar quem eram esses cabanos. Esses revoltosos eram comumente tratados de forma muito genérica, quando não, desqualificados, tidos como degenerados, alcóolatras. Assim como a história conduzida pela classe dominante nunca deu feições para os cabanos, ela também omitiu as atrocidades cometidas pelas forças legais da época, comandadas pelo general de Andréa que, ao passo que reprimiu a revolta, escreveu uma das primeiras versões da história do movimento, um registro que, passado a pano de sua classe abastada, envernizada e bastante inclinada a criar uma narrativa da construção brasileira de nação.
Os pares do general, proprietários de terras e bem nascidos, sedentos de mais poder político frente às novas tramas na então formação do Império brasileiro, são postos como defensores da civilização, da razão e do direito. Inclusive, outra omissão interessante é a de que o mesmo general havia sofrido diversos revezes e derrotas humilhantes em inúmeras vilas da Província, sendo a única vila destacada na sua produção a de Cametá, onde com alguma dignidade se manteve o moral de sua tropa.
Vale a pena a leitura do livro Visões da Cabanagem e também vale a continuidade da reflexão das esquerdas nortistas do quanto nos é favorável relembrar que um dia povos em condições miseráveis e cheios de força e vontade própria, de desejo de emancipação, entraram num movimento com variadas frentes para marcar posição, e uma posição revolucionária. É preciso estarmos mais conscientes de nossa história e, acima de tudo, traçarmos uma linha memorial que nos inspire a lutar pela vida digna a qual todos temos direito.
Por fim, cabe o constante estudo da história dos povos originários, do chão que pisamos, do que os novos tempos demandam no enfrentamento de uma velha guerra, renovada diariamente. Vamos à raiz de nossa história, portanto, de uma maneira radical. Indígenas, caboclos, nortistas, verdadeiros donos desta terra, uni-vos!