Sankofa, a África que nos habita

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MEMÓRIA. Série sobre a África mostra que sabemos pouco sobre o que foi a escravidão no Brasil (Foto: Divulgação)

Existe uma lacuna em relação à história africana e isso não é por acaso, pois a história da diáspora negra sempre foi contada pelo ponto de vista do colonizador. A série Sankofa cabe como uma luva para os brasileiros em busca de suas raízes ancestrais na África contemporânea.

Por Iêda Barbosa | Rio de Janeiro


CULTURA – Sankofa, a série de dez capítulos que está disponível na Netflix, é para mim poesia e aventura. Trata-se de uma expedição aos pontos de partida dos africanos que foram sequestrados, com o intuito de recuperar a memória da escravidão. 

O fotógrafo César Fraga e o professor Maurício Barros viajaram por nove países africanos para conhecer os locais de memória do tráfico de negros escravizados para o Brasil. Foram em busca das histórias dos que ficaram e dos que foram levados a partir. Voltaram com uma bagagem riquíssima de imagens e saberes que há muito nos foram negados. Existe uma lacuna em relação à história africana e isso não é por acaso, pois a história da diáspora negra sempre foi contada pelo ponto de vista do colonizador. Por isso, muitas informações “inconvenientes” foram apagadas propositadamente.

Porém, nossa memória ancestral está sempre presente, indagando, fazendo um chamado, evocando uma certa nostalgia, querendo ser desvelada. Isso é Sankofa. A palavra “quer dizer que quando você se esquece de algo é preciso retornar ao lugar onde o acontecimento foi esquecido para recuperá-lo. Isso vale não apenas para retornos geográficos, mas para quaisquer perdas do passado. Cabe como uma luva para os brasileiros em busca de suas raízes ancestrais na África contemporânea”,  explica o professor Maurício Barros.

Cada capítulo trata de um país, mostrando a diversidade cultural e a exuberância natural de todos deles, e ao mesmo tempo revelando os vínculos que ligam o povo brasileiro aos seus antepassados africanos. Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Angola e Moçambique guardam fortes laços que nos unem à mãe África. 

Os registros fotográficos dos lugares de memória da escravidão são belíssimos. Verdadeiras aulas de História são dadas pelos professores Mônica Lima, da UFRJ, e Paulo de Jesus, da UFRB, além de tantos outros intelectuais negros brasileiros, como Muniz Sodré e Flávia Oliveira, elucidando fatos deturpados ou silenciados pelos livros da escola tradicional. Contos africanos narrados por Zezé Motta dão um toque lúdico e nos fazem convidar os pequenos a embarcar na viagem também. A trilha sonora é de Maurício Pacheco e Moreno Veloso. Enfim, é uma amálgama poética, visual, intelectual e emocional. 

A série também oferece aventura mostrando os desafios da viagem ao percorrer todos esses países. A logística de mobilidade, precisando levar em consideração não apenas os meios de transportes disponíveis, mas também tensões geradas pelas situações políticas de algumas regiões em guerras civis, que poderiam expor os viajantes a certos perigos. Sem contar com as barreiras geradas pela diversidade de línguas e dialetos. 

Felizes “coincidências” pontuaram a viagem, como, por exemplo, se depararem com a procissão das sacerdotisas em Abomé, evento que ocorre a cada vinte e quatro anos apenas. Tais fatos enriqueceram a narrativa com mais belezas e curiosidades. César e Maurício estavam, de certa forma, protegidos com muito axé, não apenas de seus ancestrais, mas também de todos os contemporâneos, que mesmo sem saber do desenrolar de tal projeto, partilham no seu âmago um sentimento comum: o desejo por um acerto de contas com a verdadeira História da diáspora negra. 

História da África

Embora seja um continente composto por 54 países independentes, a África é percebida ou descrita, muitas das vezes, erroneamente, como uma única nação. Tal fato é fruto do que a comercialização insana de corpos negros perpetuou no imaginário coletivo do resto do mundo. Consequência de um discurso superficial, indiferente, focado apenas no acúmulo de capital às custas da barbárie.  Mas o fato é que a ciência já comprovou que a África é o berço da humanidade, e nosso olhar precisa ser aprimorado. 

A escravidão foi o modelo econômico dos colonizadores, ou melhor dizendo, invasores europeus. Uma atividade altamente lucrativa impulsionada pelo fomento de guerras entre nações. Estruturas monumentais foram construídas para dar o suporte necessário às transações comerciais. Fortalezas, armazéns de seres humanos, celas, instrumentos de aprisionamento e torturas e a “porta do não retorno”. O marco definitivo, sem volta, para aqueles seres escravizados que deixavam sua terra, sem direito a retornarem.  

Esse termo, e as imagens desses pontos, que selaram o destino de nossos antepassados, tocaram profundamente.  As dores e cicatrizes deixadas no continente são tão profundas, que marcos memoriais foram erguidos e abertos à visitação, para que nunca nos esqueçamos desse crime cruel contra a humanidade.

Cartaz de divulgação da série da Netflix (Imagem: Reprodução)

Exploração colonial e ancestralidade

A escravidão é uma instituição muito antiga na história da Humanidade, e o principal mecanismo de produção dos escravos é a guerra. A empreitada colonial escravista europeia investia pesadamente nas guerras que alimentavam o tráfico transatlântico. 

Alguns povos se refugiavam nas águas contra inimigos que não se aventuravam a enfrentá-las. Assim, surgiram Togo Ville, no Togo, e também a Veneza Africana, em Ganvié, no Benim. Formas de viver totalmente moldadas para escapar das rotas de captura.

Conhecemos também as comunidades dos descendentes de brasileiros retornados. A Casa do Brasil, em Gana, recebeu os afro-brasileiros que voltaram como pessoas livres. O mesmo aconteceu no Benim, destino dos libertos islamizados regressados do Brasil.  Em Lagos, na Nigéria, o “Brazilian Quarter” é mais uma dessas comunidades de retornados. Todos esses lugares são hoje habitados pelos descendentes da diáspora africana que levaram consigo marcas do Brasil, como arquitetura, culinária, nomes de lugares e até mesmo nosso carnaval.  

Sobre o carnaval que acontece na Nigéria, semelhante aos moldes brasileiro, vale uma reflexão: o carnaval carioca é uma festa de raízes negras, porém essas raízes foram nutridas por diferentes nações e culturas africanas, formando assim uma cultura negra brasileira bem peculiar e única. É curioso ver essa festa carnavalesca tradicional do Rio de Janeiro sendo reproduzida em Lagos, como fruto dessa mistura cultural. 

Tal reflexão remete às várias nações étnicas culturais do continente, quebrando o paradigma de uma unidade Africana. Nos deparamos com uma África diversa: aquela mítica, tribal, de natureza selvagem e ao mesmo tempo contemporânea, colorida, vibrante, sem deixar de ser tradicional e ancestral.

Diversidade cultural africana

A capoeira e o samba são influências de expressões culturais africanas que apareceram durante a viagem. Comunicação por meio da linguagem corporal através da capoeira, demonstrada em um encontro inusitado com crianças brincando na beira da praia em Angola. O som dos tantãs africanos e as mulheres em Benguela dançando com o chocalho amarrado na canela, espelham a origem que resultou no nosso samba. 

Os tambores nos remetem às religiões de matizes africanas e seus batuques.  São visitados lugares considerados sagrados como templos e santuários, onde aconteciam rituais de iniciação e tradições religiosas, muito semelhantes ao que conhecemos nos terreiros do Brasil. É muito nítido como a matriz corporal africana permaneceu nos ritos religiosos dos negros no Brasil.  

O mercado de fetiche, onde são vendidos amuletos da religião Vodum, nos dá oportunidade de constatar como esses termos foram distorcidos e demonizados pelos colonizadores. Porém, existe uma influência muçulmana marcante em alguns países como Senegal e Moçambique, mostrando uma outra face religiosa da África. 

Luta e resistência

O professor Muniz Sodré diz que “o terreiro é núcleo de resistência e de continuidade da forma social negra”. Resistência ao colonialismo português, que negou, desumanizou e desqualificou a cultura negra. Porém, monumentos também foram erguidos em vários países africanos em memória dos movimentos de resistência e libertação contra a invasão e a dominação estrangeira. A rainha Jinga liderou um exército que lutava contra a escravidão, colocou a mulher no papel central da resistência escrava.

É notório o interesse que o tema escravidão desperta nos dias de hoje. A busca por memórias soterradas para a reconstrução de laços ancestrais desperta a nossa consciência identitária e fortalece o orgulho negro. Como disse Flávia Oliveira no documentário: “o orgulho negro viralizou e se ampliou”.

Sankofa nos oferece a possibilidade de um retorno, mesmo que simbólico, às nossas memórias da África que nos habita e que ficaram do outro lado.