Gabriela Torres Martins
SÃO PAULO – Como se não bastassem os séculos de repressão, genocídio, roubo e apagamento, os povos originários ainda foram parte importante na luta contra a expressão fascista do imperialismo norteamericano durante a ditadura militar brasileira, ainda que na maioria das vezes não sejam lembrados entre os protagonistas desse enfrentamento.
A política de genocídio se expressou de diversas formas: envenenamento em massa de aldeias, torturas, estupros, bombardeamentos aéreos, espancamentos e introdução planejada de doenças são descritas no Relatório Figueiredo da Comissão da Verdade. Dentre esses inúmeros ataques à existência dos indígenas, o período do regime militar se destacou pela materialização de uma política de extermínio através de presídios como o Reformatório Krenak, localizado na cidade de Resplendor (MG), e a Fazenda Guarani, na cidade de Carmésia (MG).
Esses espaços foram utilizados para sessões de espancamento, tortura e trabalho escravo para kaigangs, guaranis, krenaks, ashaninkas, pataxós e outras dezenas de etnias das mais diversas regiões do país. Os prisioneiros eram submetidos a maus tratos, ficavam dias sem comer, sem água e sem vestimentas. Registros da historiadora Geralda Chaves Soares, que trabalhou no Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Minas Gerais, descrevem casos de indígenas levados a esses campos de concentração étnicos, onde foram obrigados a confessar crimes que não haviam cometido, após sofrerem espancamentos severos de policiais militares. A identidade do povo krenak foi duramente violentada durante o processo de desterritorialização, como forma de garantir a construção desse porão racista da ditadura, além de serem obrigados a pararem de falar borun, pois surras de chicote eram comuns aos que se atrevessem a se comunicar em suas línguas maternas.
As desculpas utilizadas para tentar legitimar as sessões de tortura variavam de alcoolismo à vadiagem, e de acordo com os documentos da época, dezenas de indígenas foram presos sem quaisquer justificativas formais. Sob a perspectiva de perpetuar essa forma de violência do Estado a qualquer custo, a ditadura investiu na organização da Guarda Rural Indígena (GRIN), uma milícia constituída por dezenas de etnias e preparada para torturar e repreender manifestações de luta e resistência dos povos originários perante as atrocidades cometidas pelos carrascos fascistas. A primeira turma de “formados” foi constituída majoritariamente de karajás, e a Guarda ficou registrada por ter protagonizado a única cena pública de uma prisão no pau-de-arara, uma conhecida forma de tortura utilizada nos porões da ditadura. A iniciativa do governo brasileiro foi responsável por pelo menos 8.350 assassinatos de indígenas durante esse período.
“É guerra o tempo todo, em todos os lugares”
Apesar da Ditadura militar ter representado um momento de aumento expressivo da repressão, da violência e do genocídio, esse chamado “estado democrático”, imposto pelas classes dominantes, também não deixa a desejar quando o assunto é extermínio: a luta pela sobrevivência se desdobra pela História de cada um dos povos que residem no território nacional, e não faltam exemplos de ataques dos mais diversos. Para Ailton Krenak, organizador da Aliança dos Povos da Floresta e liderança indígena, “a guerra é um estado permanente entre os povos originários, sem nenhuma trégua”. Sustentando sua tese de falsa paz, o filósofo mineiro dialoga com a defesa leninista do que significa essa forma de organização da sociedade, a disputa de interesses antagônicos.
Todos os avanços conquistados são fruto de anos de luta e resistência coletiva, e a redemocratização não foi diferente: debaixo de pressão popular, a ditadura militar fascista foi derrotada, e o Estado brasileiro foi obrigado a garantir um capítulo que abordasse a proteção dos povos indígenas como uma problemática nacional. Materializando essa necessidade, o jovem Ailton Krenak entrou para a história ao proferir um discurso, em 1987, responsabilizando os poderosos pelos mais de 5 séculos de atrocidades cometidas e pintando seu rosto de jenipapo em forma de protesto.
“O povo indígena tem regado com sangue cada hectare os 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso.”
Contudo, os massacres promovidos pelo latifúndio, o etnocídio e a violência institucional – como a aprovação do marco temporal pela bancada ruralista – seguem acontecendo de forma recorrente, tirando o sono, a paz e a vida de aldeias e etnias inteiras todos os dias. Depois da chacina racista promovida durante a ditadura, os banqueiros e milionários mantém suas agressões ao povo krenak: o desastre em Mariana (MG), em 2015, destruiu cidades inteiras e envenenou o rio sagrado Watu, principal fonte de subsistência da região. O Estado, enquanto existir, será instrumento de dominação de uma classe sobre a outra; a sociedade, enquanto estiver sendo conduzida pelos grandes ricos e latifundiários, seguirá priorizando o lucro acima de qualquer povo e acima de qualquer vida, mas os povos indígenas, enquanto existirem, trarão consigo a memória, a verdade e a justiça.