Antes da pandemia do Coronavírus, o trabalho doméstico empregava no Brasil, mais de 6 milhões de trabalhadores, sendo 92% mulheres e 63% negras. O trabalho doméstico é tido como alternativa para muitas mulheres pela falta de oportunidade no mercado de trabalho formal e acaba sendo um reflexo da exclusão das mulheres aos direitos sociais. Menos de 1/3 tem carteira assinada e cerca de 90% das trabalhadoras domésticas não tem acesso à seguridade social (Fonte: PNAD), com os níveis de remuneração mais baixos do mundo.
Em grande parte, as empregadas domésticas moram nas periferias em condições precárias e muitas vezes são obrigadas a pegar dois transportes públicos, gastando muito tempo no translado para chegar às casas dos patrões. A maioria tem filhos, que ficam com familiares enquanto suas mães trabalham; muitas cuidando dos filhos dos patrões.
Uma das profissões mais afetadas pela pandemia foi a das trabalhadoras domésticas. Segundo o presidente do Instituto Domestica Legal Mário Avelino, mais de um milhão e meio de trabalhadoras domésticas perderam emprego e 95% perderam renda. Pesquisa realizada em São Paulo aponta que oito entre 10 delas perderam ao menos um posto de trabalho na pandemia e mais da metade (52%) não tem mais nenhuma renda. As que continuaram trabalhando, na maioria dos casos, ficaram em condição de isolamento na casa dos empregadores, enquanto outra parcela foi obrigada a trabalhar informalmente, se submetendo a um salário reduzido, para sobreviver.
Enquanto patrões, na pandemia, não fornecem máscaras, luvas ou álcool em gel, insinuam que as trabalhadoras domésticas são um risco de contaminação pelo vírus. Na verdade, o trabalho doméstico, pela sua desvalorização e pelos precários salários pagos a seus profissionais, é que impõe uma vida de vulnerabilidade e precarização.
A morte do menino Miguel
Um caso emblemático da situação por que passam as empregadas domésticas foi a morte do menino Miguel Otávio de Santana, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata de Souza, no ano passado. Ele caiu do nono andar de um condomínio de luxo no Recife, onde Mirtes trabalhava. No local, residia o casal Sérgio Hacker e Sari Corte Real. Ele Prefeito de Tamandaré (cidade balneária do Litoral Sul de Pernambuco) e ela de família tradicional do estado. A trabalhadora doméstica tinha, inclusive, vínculo empregatício na prefeitura de Tamandaré, o que caracteriza um abuso de poder econômico.
Com a pandemia e a impossibilidade de levar o filho para a escola, Mirtes o levava consigo quando ia trabalhar. No dia 2 de junho do ano passado, a patroa mandou Mirtes passear com o cachorro da família. Deixou Miguel com Sari Corte Real, que estava em casa fazendo as unhas.
Como é natural em crianças de 5 anos, o menino queria ficar com a mãe, mas a patroa estava preocupada em fazer as unhas. A insistência do garoto persistiu e a desumanidade da patroa fez com que ela permitisse que o menino entrasse em um elevador sozinho, apertando no número 9, o que permitiu que a criança caísse do nono andar do prédio, levando à morte do menino Miguel.
Uma questão de classe
Mesmo que patrões domésticos insistam em não reconhecer o vínculo empregatício, que insistam em dizer que as empregadas domésticas sejam “da família” ou ainda “secretárias”, o trabalho doméstico é um resquício de uma relação escravocrata, onde a trabalhadora no capitalismo “serve” a uma família individual, com obrigações de cuidado com casa, com a feitura de comida, com o cuidado com a roupa. O que caracteriza o principal papel das mulheres ao longo da existência da propriedade privada e do patriarcado: a reprodução social. O modelo Casa Grande-Senzala segue sendo reproduzido no Brasil de hoje, com funcionários fardados, comidas separadas e todo o tipo de segregação possível.
A história da morte do menino Miguel é, portanto, uma triste representação dessa história: a falta total de solidariedade, o descompromisso com a vida dos empregados, explorados, subalternos, inferiores.
Na verdade, a patroa Sari Corte Real estava incomodada com os reclamos do menino Miguel, que não era de sua família, nem de sua raça e nem de sua classe. Então ele não merecia sua paciência e, numa atitude para continuar na sua atividade de cuidar de suas unhas, precisava se livrar dele. Assim, abandonou o menino à própria sorte e causou a morte de Miguel, filho único de sua empregada doméstica, Mirtes Renata de Souza.
O caso levou a uma comoção importante na cidade do Recife e a mobilização da sociedade civil em apoio à sua família escancarou esta contradição evidente das relações entre os patrões e os empregados domésticos, o que obrigou a justiça a reconhecer várias das injustiças e, consequentemente, a indenização de parte das causas ganhas na Justiça. Este mês, quando completou 1 ano da morte por desumanidade do menino Miguel, foram realizados novos protestos. Mirtes, em seu sofrimento de uma mãe que perdeu um filho fruto de uma sociedade desigual e injusta, se matriculou no curso de Direito e busca poder contribuir com a luta de seus iguais, se tornando uma ativista do movimento pelos direitos dos negros e das trabalhadoras domésticas.
Guita Kozmhinsky, coordenadora nacional do Movimento Olga Benário.