Ingrid Munhoz
SÃO PAULO – O bairro do Canindé localiza-se no coração da maior cidade da América Latina e expressa todas as contradições urbanas de São Paulo; foi morada da importante escritora Carolina Maria de Jesus e é, essencialmente, um bairro da classe operária, formado por trabalhadores, muitos deles migrantes e imigrantes. Há seis meses, um movimento de mulheres decidiu dar função social a um dos tantos prédios abandonados nesse importante bairro, à mercê da especulação imobiliária: hoje, a Casa de Referência para Mulher Laudelina de Campos Melo comemora seu sexto mês de resistência.
Violência doméstica e pandemia
O Brasil já acumula mais de meio milhão de mortos em decorrência da COVID-19: incapacidade administrativa, discursos negacionistas e escândalos de corrupção acompanham o governo genocida de Bolsonaro, que não tem feito esforços para contornar a situação de fome e de desemprego, problemas agravados pela crise sanitária. As mulheres trabalhadoras são as mais atingidas pela crise e, muitas vezes, estão isoladas em casa com seus agressores e suscetíveis a diversas formas de violência.
Ainda que subnotificados, os números disponíveis apontam para um aumento exponencial da violência doméstica desde o início da pandemia: o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou, em março, que a plataforma Disque Denúncia (181) recebeu mais de 100 mil denúncias de violência doméstica no último ano; de acordo com os dados disponíveis no site da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, foram registrados 18 casos de feminicídio na capital nos primeiros 5 meses de 2021; também na capital, foram notificadas – entre janeiro e maio – mais de 4 mil ocorrências de lesão corporal dolosa e o 12º Distrito Policial, localizado no Pari, a 850 metros da Casa Laudelina, registrou 12 casos de estupro nesse mesmo período.
Um grave problema encontra as vítimas que denunciam seus agressores: elas são frequentemente desencorajadas e constrangidas nas delegacias. O acolhimento, obrigação dos agentes que compõem esses instrumentos do Estado, simplesmente não ocorre. Quantas vezes mais o direito de viver será negado à mulheres vítimas de violência?
Ocupar pela vida das mulheres: A Casa de Referência para Mulher Laudelina de Campos Melo
A especulação imobiliária no centro de São Paulo é grave: são 40 mil imóveis abandonados, que não cumprem nenhum tipo de função social. Nesse sentido, as ocupações urbanas são um importante instrumento de luta não apenas por moradia digna, mas por outros equipamentos que garantam o acesso aos direitos negligenciados pelo poder público.
Antes de ser ocupado e tornar-se uma casa de referência para mulheres, o prédio de dois andares que foi, dentre outras coisas, uma fábrica de cosméticos nos anos 90, permaneceu selado por vinte e cinco anos. Foram quase três décadas sem nenhum tipo de função, até a construção da Casa Laudelina, realizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário em janeiro de 2021.
Atualmente a casa oferece psicólogas, assistentes sociais e advogadas para as vítimas de violência. Além de todo o acolhimento realizado de forma humana, o movimento contribui para o processo de conscientização das mulheres, não resumindo suas ações a uma ajuda meramente assistencialista: transformam vítimas em lutadoras sociais, ávidas pela construção de um mundo mais justo e sem classes.
Além de todo o time de assistência, a Casa ainda organiza um brechó semanal com roupas a preço popular, doações de cestas básicas e de itens para crianças como roupas e brinquedos. Toda essa estrutura só é possível através de doações, organização pautada pelo poder popular, formação de militantes e ajuda de apoiadores.
O primeiro atendimento realizado pela casa ocorreu antes mesmo do primeiro dos tantos mutirões de limpeza, tamanha a necessidade e urgência de ocupações como estas. Muitas das assistidas são migrantes e imigrantes, em especial nordestinas, venezuelanas e bolivianas.
Para Tami Ito Tahira, coordenadora da Casa, o abandono do Estado na região é grave: basta ficar poucas horas no local para presenciar pedidos de ajuda por itens básicos de sobrevivência como água e comida. A casa, de acordo com Tami, deseja construir um espaço seguro para as mulheres e um ponto de referência que ofereça cursos de formação política e de especialização, que possibilitem a entrada no mercado de trabalho e facilitem a independência econômica das mulheres.
Atualmente a casa aceita doações através da plataforma conjunta com a Casa de Referência Helenira Preta, no apoia.se e pela chave pix: 091.182.556-80.
Laudelina de Campos Melo
Mineira e neta de escravos, Laudelina organizou-se no Partido Comunista Brasileiro aos 32 anos, foi importante quadro na organização do povo negro e ousou construir a Associação de Trabalhadores Domésticos, grande experiência de organização da categoria no país, brutalmente reprimida pelo governo Vargas. Trazer a memória de uma mulher negra e militante comunista para uma Casa de Referência da mulher significa fazer viver a memória de uma grande lutadora, além de ser uma importante disputa política pela lembrança do nosso povo.
O Movimento de Mulheres Olga Benário constrói seis casas de referência para mulheres no Brasil: Helenira Preta e Helenira 2 (Mauá), Mulheres Mirabal (Porto Alegre), Tina Martins (Belo Horizonte), Laudelina de Campos Melo (São Paulo) e Carolina Maria de Jesus (Santo André).