José Levino
No dia 19 de setembro de 2021, completam-se cem anos do nascimento do educador Paulo Freire. A sua concepção de educação, em nossos dias, permanece mais atual do que nunca e, por isso mesmo, combatida da mesma forma, ou até mais violenta e agressivamente do que em seu tempo.
Na atualidade, tanto no Brasil quanto em outros países, aflora de modo explícito e hostil o obscurantismo medieval, que nega o valor da Ciência, reafirma que a terra é plana e preconiza que todo o sofrimento e opressão recaídos sobre os povos advêm da vontade de Deus. Que se levantar contra isso é se colocar contra o Supremo, merecendo, assim, a morte, para varrer satanás da face da terra. Na verdade, essa visão ressurge com força por conta da crise do capitalismo em nível mundial, para mobilizar em sua defesa ou, pelo menos, manter em estado de letargia o povo sofrido e oprimido.
Aqui, um adepto dessa concepção assume a Presidência da República e, diante do aumento do desemprego e da fome, aponta como solução que todos comprem um fuzil. Claro que ele, como todos, sabe que os famintos não podem comprar nem o feijão, quanto mais o fuzil. A arma vai servir exatamente para os ricos eliminarem os famintos que ousarem buscar o alimento onde ele se encontra. Um sofisma se ouviu: “o povo armado jamais será escravizado”. Acontece que, sem consciência de classe, que vem do conhecimento da realidade em que vive e dos meios de transformá-la, um povo armado permanecerá escravizado e perpetuará a escravidão, voltando o fuzil contra os irmãos que se rebelarem, ou seja, contra si mesmo, objetivamente falando. Seu ministro da Educação diz em público que a Universidade não é para todos e pouco se preocupa com o ensino nos demais níveis.
É aí que entra Paulo Freire com a Pedagogia do Oprimido, ou Educação Libertadora, que tanto ódio desperta nas classes dominantes. Pernambucano, de Recife, Paulo sentiu a fome na pele, como relata: “O real problema que nos afligiu durante grande parte da minha infância e adolescência foi o da fome. Fome real, concreta, sem data marcada para partir”. Aprendeu a ler em casa: “Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa, à sombra das mangueiras. O chão foi meu quadro-negro; gravetos, o meu giz”.
Com o apoio do proprietário do Colégio Oswaldo Cruz, professor Aluízio Pessoa de Araújo, cursou o magistério e, a seguir, a Faculdade de Direito do Recife. Mas desistiu logo da carreira jurídica e foi trabalhar no Serviço Social da Indústria (Sesi), educando trabalhadores, onde desenvolveu sua Pedagogia Libertadora e o revolucionário Método de Alfabetização.
Educar para quê?
A escola privada foi trazida para o Brasil pelos jesuítas no período colonial. Em 1772, foi aprovado o ensino público, mas pouco efetivado, mesmo após a vinda de dom João VI, no século XIX. A educação era privilégio para poucos. Só para a elite, isto é, para os filhos dos senhores de terra e dos membros da corte, dos ricos, enfim. A Nova República (governo de Getúlio Vargas) amplia a educação pública, dividindo-a em escolas técnicas (as escolas dos pobres) e as humanistas (escolas dos ricos). A Educação era, assim, funcional. Os pobres precisavam aprender as técnicas para trabalhar, a fim de desenvolver a economia. Os ricos precisavam compreender como funciona o sistema, para administrá-lo e defendê-lo.
No governo de João Goulart (1961-1964) é que o presidente envia ao Congresso a proposta de reformas de base, entre as quais a reforma educacional. Neste aspecto, propõe a valorização do ensino público em todos os níveis, erradicação do analfabetismo com aplicação do Método Paulo Freire, fim da cátedra universitária, entre outras medidas de universalização do ensino.
Educação Libertadora
Na concepção de Paulo Freire, a verdadeira educação não se dá pela mera transmissão de conhecimento, a “educação bancária”, como ele chamava, na qual o professor deposita seu conhecimento na mente do aluno, que é apenas um receptor, não questiona, não cria, é simples objeto. Na Educação Libertadora, o educando é o sujeito da educação; ao aprender a ler, ele não apenas fala o que está escrito, mas passa a conhecer a realidade que já sente; ele se torna capaz de interpretá-la e refletir sobre a necessidade de transformação e como esta pode ser feita. Em artigo sobre o tema, Frei Betto explica: “Ivo viu a uva. Ensinavam os manuais de alfabetização. Com o método do professor Paulo Freire, Ivo viu os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ivo viu que a uva é colhida por boias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor. Viu todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice do vinho. Ivo tornou-se sujeito histórico”.
Na prática
Paulo Freire começou a pôr em prática seu método de alfabetização de adultos em Pernambuco, com o apoio do governador Miguel Arraes de Alencar. Sua primeira experiência famosa mundialmente, entretanto, foi no povoado de Angicos (RN), no ano de 1963. Em 40 horas de ensino, 300 pessoas foram alfabetizadas no sentido freireano. É tanto que, algum tempo depois, houve uma mobilização na cidade por direitos essenciais, algo nunca visto antes, e os poderosos atribuíram o feito à “praga comunista disseminada pelo professor”.
O método começou a ser divulgado, as experiências se multiplicaram. No dia 21 de janeiro de 1964, o presidente João Goulart editou decreto criando o Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, mediante o uso do método Paulo Freire, com o objetivo de alfabetizar politizando, cinco milhões de brasileiros. Mas não deu tempo. Temendo enfrentar um povo consciente de sua história e de sua missão, as classes dominantes deram o golpe de Estado de 1º de abril de 1964. Já no dia 14 de abril o decreto do ditador Castelo Branco cancelou o programa de alfabetização conscientizador, apresentando-o nas redes de televisão como “prova da subversão comunista que inunda o país”.
Exilado, Paulo Freire trabalhou no Chile, depois no Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça. Ministrou palestras e deu consultoria em todos os continentes, priorizando, na África, os países de colonização portuguesa. Seu método foi estudado, aplicado e comentado em todo o planeta, enquanto no Brasil a imprensa era proibida de citar seu nome. A contribuição de Paulo Freire teve um papel fundamental no processo de transição de países dominados pelo colonizador português, na África, bem como na Cruzada Nacional de Alfabetização Nicaraguense, logo que a Frente Sandinista tomou o poder. Infelizmente, hoje a Pedagogia Libertadora foi posta de lado, haja vista o retrocesso no processo revolucionário desses países.
Cidadão do mundo, o sonho de Paulo Freire era voltar para o Brasil, o que aconteceu após a promulgação da Lei da Anistia, em 1979. Lecionou até sua morte na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Na gestão de Luiza Erundina, na Prefeitura de São Paulo, Paulo Freire assumiu a Secretaria de Educação, de janeiro de 1989 a março de 1991. Sua meta era “mudar a cara da escola”, mas, ressaltava “desde que a escola queira mudar sua cara”. Mudanças como a aprovação do Estatuto do Magistério, diálogo entre gestores e professores, capacitação permanente, foram unanimidade. Entretanto, a mudança de metodologia de ensino e da relação professor-aluno esbarrou em muitas resistências, pois muitos professores consideravam que perderiam sua autoridade. Paulo Freire deixou a Secretaria antes do fim da gestão Erundina. Tendo a direita retomado a Prefeitura, muitos avanços foram suprimidos.
Partida
Até o fim – isto é, a passagem para a imortalidade, pois os seres imprescindíveis não morrem, seu corpo é plantado, mas suas ideias permanecem –, Paulo Freire continuou proferindo palestras e recebendo prêmios no mundo inteiro. Sua última palestra no Recife, completando um ciclo histórico de sua vida, foi em fevereiro de 1997, no Sesi, onde começou sua vida profissional e construiu o método revolucionário. No dia 22 de abril do mesmo ano, deu sua última aula na PUC e uma entrevista na TV Rede Vida. A seguir, no dia 25, teve uma crise de angina, à qual se sucederam vários enfartes, morrendo na madrugada do dia 02 de maio.
O legado
No Brasil e em vários países, universidades e entidades, como o Conselho da Educação Popular da América Latina e do Caribe, realizam neste ano eventos em homenagem ao centenário do grande educador para a liberdade. Eram previstas atividades de formação comunitária, mobilizações públicas, mas a pandemia de Covid-19 impediu, restringindo as homenagens a eventos virtuais.
Para o processo libertador que a Pedagogia de Paulo Freire anuncia, mais importante que louvores é a prática. E ela se mantém pelas mãos de institutos e centros de formação nele inspirados. Sua experiência africana vem sendo continuada pela Brigada Internacionalista do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que atua em países africanos onde Paulo Freire assessorou.
Só para alfabetizar?
Há quem diga que o Método Paulo Freire serve somente para alfabetizar, não sendo aplicável a outros níveis de ensino. Ledo engano. Existem teses acadêmicas defendendo sua adaptação para o ensino em geral. Uma experiência concreta neste sentido, embora não limitada a Paulo Freire, mas que ele, com certeza, aplaudiria, pode ser conhecida em Pernambuco, por intermédio do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), voltado para agroecologia, conduzido pelo professor e filósofo Abdalaziz de Moura. Paulo Freire vive. Viva Paulo Freire!
(José Levino é historiador)