Bianca e Beatriz Caroline
No dia 18 de outubro de 2021, Luis Eduardo da Rocha Merlino completaria, se estivesse vivo, 73 anos – o que foi impossibilitado por seu assassinato a sangue frio pelo agravamento do quadro de gangrena em suas pernas, após uma longuíssima sessão de torturas no pau de arara, à qual se seguiu seu abandono numa solitária: o estudante do curso de História da USP, jornalista e militante político comunista foi deixado para morrer por decisão do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra no ano de 1971, quando ainda estava vigente no país uma ditadura militar abertamente fascista.
Em plena juventude, Luiz já era um quadro bastante ativo no Movimento Estudantil, no seu ofício como jornalista participou da redação de diversas matérias e chegou a dar cobertura e participar do trigésimo Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968 – quando delegações de estudantes de todo o país se uniriam para discutir os caminhos daquela entidade em pleno desenrolar das perseguições da ditadura, que se intensificaram após a instituição do AI-5 naquele mesmo ano. Após retornar de um estágio político de 6 meses que realizou na França por motivos de formação, Merlino encontrava-se há poucos dias na casa de sua mãe quando recebeu a visita de um suposto amigo – a qual logo revelou ser uma operação de busca a Nicolau (nome de guerra de Luiz): preso em frente de sua família por quatro homens, Merlino morreu 4 dias depois dessa “visita”. No velório, esses mesmos quatro agentes da ditadura cinicamente disseram que sentiam muito pelo acontecido.
Nessa linha de acontecimentos, não sobreviveu a farsa sustentada pelos militares sob o comando de Ustra (que, então, forjaram o suicídio do jornalista e comunicaram uma suposta tentativa de fuga de Merlino), desmascarados pelo cunhado do estudante, cujo cargo militar possibilitara a sua entrada no IML à procura do corpo que logo seria encontrado com evidentes marcas de tortura. Para além da manipulação envolvendo a morte de Luiz Eduardo Merlino, e de outras tantas vítimas desse regime criminoso, os mesmos militares e torturadores conduziram também os rumos que tomariam, nos anos 80, o processo de reabertura política, cujo golpe fatal se iniciaria através de uma Anistia para torturados e torturadores.
No combate ao silenciamento, essa denuncia é pronunciada: o que se seguiu ao processo de Anistia (1979), nos quadros da “redemocratização” (no lugar do atendimento às demandas populares), foi a serventia ao abafamento do terrorismo de Estado sobre a vida de Merlino e outros tantos trabalhadores, militantes e estudantes que sofreram as brutalidades das perseguições, assassinatos e desaparecimentos característicos daquele sombrio período. Assumindo esse mesmo aspecto, a luta por memória, verdade e justiça, contra a impunidade legada, reverbera na acusação das continuidades e dos retrocessos que vemos hoje por meio da política criminosa do governo Bolsonaro, na apologia a golpes militares e ao suprimento de direitos políticos – bem como à derrubada do STF pronunciada pelos fascistas no dia 7 de setembro numa ofensiva fracassada do genocida na presidência (declarado saudosista do regime de 1964).
Fica patente, também na atual conjuntura, quando os dirigentes da “melhor universidade da América Latina” dão mostras de seu caráter: negligenciam a vida e o direito à permanência de estudantes de baixa renda e moradores do CRUSP enquanto demonstram abertamente uma escalada autoritária na universidade, percebida em medidas como o aumento do policiamento na Cidade Universitária. No dia 27 de setembro, a recepção do deputado estadual Douglas Garcia (PSL) à Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e ao Conjunto Residencial da USP assumiu claro tom de afronta, perseguição política e defesa ideológica do conservadorismo, um ano após o mesmo ter divulgado um dossiê com mais de 900 páginas de perfis identificados como antifascistas.
Diante desse cenário, resgatando o sentido da luta política dos estudantes que, durante os anos de vigência do regime militar (de 1964 a 1985), assumiram o papel de desgaste da ditadura, enquanto militantes do Movimento Correnteza e integrantes do Centro Acadêmico de História (CAHIS – Luiz Eduardo Merlino) – cujo nome carrega a homenagem ao aluno morto em 1971 – rechaçamos o alinhamento fascista da reitoria da Universidade de São Paulo. Portanto, a partir desse exemplo de luta que a comunidade estudantil mobiliza-se desde os primeiros atos de maio, encerrando num mesmo enfrentamento o resgate à memória do movimento estudantil dos anos de chumbo e o papel dos estudantes hoje, quando levamos seu nome e seu legado às ruas, fazendo história e dando sentido ao mote “Não esquecemos, não perdoamos e não reconciliamos!” (em referência ao Coletivo Merlino e à Frente de Esculacho Popular).
Merlino presente!
Lembrar de sua história é como tirar a poeira de
Uma caixa de relíquias que não merecem ser esquecidas
Igualmente é desafio. Compromisso com A Verdade. Remexer nessa
Zona proibida, censura e apagamento.
Estudante de História e jornalista
Despediu-se de sua mãe 4 dias antes.
Ustra, assassino!
A escolha de amputar as pernas e deixar viver
Realmente foi muito difícil…
Deixaria evidente a tortura de Merlino,
“Os ossos do ofício”:
Desova num porta-malas, depois
Atropela e diz que foi suicídio!
Recuperada a sua trajetória,
Os senhores que me perdoem, mas
Como podem ainda contar essa
História suja de sangue e covardia?
Anistia ou apagamento?
Memória: Marighella, Manoel Lisboa, Merlino,
Entre tantos outros assassinados na ditadura, sua
Resistência é mais dura que esse regime!
Lutam e vivem entre nós muitos que ainda sonham
Inspirados num Mundo Novo e melhor, mas que para isso
Não deve ser esquecido, perdoado ou reconciliado!
Outro mundo será erguido com o legado dos nossos lutadores! (Acróstico por: Bianca Caroline)