A fotografia já foi um bem ao qual somente alguns grupos sociais tinham direito. Os desafios colocados pela fotografia analógica são um dos exemplos de como o projeto de sociedade capitalista e racista se utiliza de todos os meios possíveis para se manter.
Tami Tahira
SÃO PAULO – Entender como é possível o filme fotográfico carregar o racismo de seus fabricantes foi uma descoberta científica essencial para livrar as pessoas não-brancas da culpa por não conseguirem fazer boas fotos de suas comunidades. A responsabilidade não era da falta de técnica pessoal de cada fotógrafo, mas das emulsões e processos químicos em si.
Pode um filme fotográfico vir com racismo de fábrica?
A fotografia analógica foi a linguagem predominante no século XX: era feita com um filme fotográfico preto e branco ou colorido colocado numa câmera analógica que fotografava manualmente e depois era revelado em uma casa especializada em fotografia.
A fabricação do rolo fotográfico e dos químicos que a revelam é feita por pessoas criadas por sua própria cultura, viés e projeto racial estruturante da sociedade. O filme é produzido dentro, por e para essa sociedade e é impossível dissociá-lo dessa conjuntura. Isso quebra o mito da neutralidade da técnica.
A pele das pessoas negras era opaca, não apresentava tantas texturas e detalhes como a das pessoas brancas. As pessoas indígenas e leste-asiáticas tinham tonalidades estranhas de avermelhado e amarelado. Poderia a fotografia, antes tida como captura fiel da realidade, estar embutida de racismo?
Pessoas não-brancas, principalmente os reveladores de filmes, tentavam de tudo para um melhor resultado mexendo na exposição, na luz, nas cores para conseguir um retrato mais digno. Nas instruções da Kodak, vinha um cartão usado como referência de luz e cor padrão para regular a fotografia.
Esses cartões, com cores e uma mulher branca usados como padrão “normal”, ficaram conhecidos como “cartões Shirley”, pelo nome da mulher que aparecia. A mulher de referência era invariavelmente branca.
A fotografia na manutenção do projeto racial que serve à branquitude
É lá pela década de 50 que o equipamento para essa arte chega com mais força no Brasil. Em 2009, Lorna Roth (estudiosa de mídia e imagem) publica um artigo ao se deparar com o fato de que diversas pessoas não-brancas não estavam satisfeitas com as fotografias dos anos 90.
A feitura dos químicos para revelação do filme fotográfico priorizava cores que revelassem o rubor, a tez e os detalhes de tons claros no produto, o que deixava que os tons escuros acabassem com menos variedade já que para a indústria não necessitavam de tanta precisão como os claros.
Isso fazia os filmes perfeitos para peles brancas, mas incapazes de diferenciar peles mais retintas, avermelhadas ou amareladas, de outros tons escuros na imagem. A Kodak só ampliou sua gama de tons nos anos 70 por dois motivos movidos pelo lucro: a exigência de grandes empresas de chocolates e móveis que precisavam de um filme que captasse as nuances para diferenciar seus produtos (chocolate amargo, ao leite; veios e tipos de madeira) e poder vender mais; e para entrar no mercado de fotografia japonês.
Panorama da fotografia de pessoas
De 1930 em diante, os fotógrafos modernos propuseram que a fotografia era uma arte específica, com suas próprias características, que construía uma realidade maior do que simplesmente capturar a imagem de forma neutra (há escolha de luz, ambiente, elementos, ângulos, mais do que somente bater o botão da foto de maneira aleatória). Isso foi experienciado na fotografia francesa da Segunda Guerra Mundial.
Robert Doisneau é um dos fotógrafos que compunham o humanismo francês, que retratava a reconstrução no pós-guerra, como nessa série de fotos publicada pela Revista Life nos EUA. Havia nesse grupo de artistas a busca por uma universalidade (temas que apelassem a todos os públicos como um beijo, rua, família, amor, cafés, pessoas comuns) e pela valorização do cotidiano (a tranquilidade nas ruas, calçadas e avenidas que anos antes foram ocupadas por tanques de guerra).
Era uma fotografia construída para levar esperança e visão otimista de mundo gerando admiração pelos Aliados. A fotografia construída com ambientes e pessoas do Eixo era outra.
Por exemplo, a fotografia do Japão pós-bombas atômicas é quase inexistente devido a barreiras na produção e circulação, pois o interesse dos Aliados era demonizar o Eixo e não causar comoção pela população atingida pela guerra nesses países.
No Brasil, a fotografia analógica colorida existia há anos, mas não era acessível à maior parte da população dado o valor alto do equipamento, do filme e da revelação. Boa parte de pessoas negras e periféricas até o fim dos anos 80 só tinham fotografias feitas em casas especializadas porque precisavam de 3×4 para entrar no mercado de trabalho. nNo tinham imagens afetivas, cotidianas, nem registros da infância.
Esse breve histórico mostra que a fotografia já foi um bem ao qual somente alguns grupos sociais tinham direito. Os desafios colocados pela fotografia analógica são um dos exemplos de como o projeto de sociedade capitalista e racista se utiliza de todos os meios possíveis para se manter.
Como pode a fotografia superar o racismo?
Não existe atalho, novas tecnologias ou reformas que possam resolver enquanto estivermos dentro de um mundo capitalista que prioriza o lucro acima de tudo. Se a fotografia, desde a fabricação de seus instrumentos até sua circulação, está submetida à lógica de poder concentrado na mão dos ricos e racistas é necessário ter o controle dos meios de produção nas mãos do povo para podermos nós mesmos criar nossas imagens e retratar nossas lutas.
A cultura só existe quando um povo tem condições de se desenvolver para criá-la.
Que a partir dessa realidade dura nos revoltemos e, mais do que ter direito ao afeto, autoestima, memória e história da qual hoje nos privam, possamos criar um mundo que seja a imagem e o reflexo da classe trabalhadora.