Racismo, capitalismo e luta de classes no Brasil

846
Gabriel Augusto Hoytil de Araújo, 17, morto pela polícia de São Paulo por portar uma marmita. A violência policial é uma das maiores forças do racismo institucional do Estado brasileiro. Foto: reprodução

O racismo configura um problema, simultaneamente, econômico e político. Não é um fenômeno conjuntural ou localizado, pois faz parte do modo regular de funcionamento da sociedade capitalista.

Durcilene Adrieli, Rio de Janeiro

RACISMO – O racismo é uma relação social que põe frente a frente brancos e negros (ou não brancos), enquanto pertencentes a raças não apenas distintas, mas desiguais e hierarquizadas, consideradas, ideologicamente, como superior e inferior.

O racismo não é uma sobra inconveniente da sociedade escravista, um elemento alienígena ao progresso prometido pelo capitalismo. Pelo contrário, é algo inerente à sua estrutura. 

Na sociedade capitalista, o racismo herdado do período colonial e do Império é incorporado às suas relações sociais determinantes, adquirindo uma forma capitalista e sendo reproduzido por mecanismos de poder e dominação.

Abolição para quem? A estruturação da política racista no estado brasileiro

A própria abolição da escravatura deve ser problematizada. Pensemos no Brasil, onde a abolição foi um “negócio de brancos”, na expressão utilizada por Octávio Ianni. Com isso não queremos dizer que os negros não assumiram protagonismo radical para alterar a sua condição de escravizados, mas atentamos para as consequências decorrentes desse processo.

Qual o significado político e econômico da abolição para os negros que eram escravizados? Que lugar eles passaram a ter na sociedade de classes brasileira? Foram eles alçados à condição política de cidadãos? Tiveram acesso à terra e à moradia? Como trabalhadores livres poderiam ingressar no mercado de trabalho em igualdade de condições?

Conforme dizia o sociólogo Clóvis Moura, a passagem da escravidão para o trabalho livre não prejudicou os interesses das oligarquias latifundiárias. Em que pese tenham perdido os escravizados, elas continuaram na posse da terra e, ainda, contaram com a chegada dos trabalhadores estrangeiros.

De um lado, por meio da Lei da Terras de 1850, o Estado abdicou do direito de doar terras e passou a vendê-las a quem tivesse dinheiro para adquiri-las. No fundo, tinha como finalidade evitar que uma lei abolicionista incluísse a doação de terras aos egressos das senzalas, a título de indenização. 

De outro lado, o governo brasileiro implantou uma política oficial de importação de trabalhadores estrangeiros, que eram considerados de raças superiores e, portanto, mais capazes e qualificados, em comparação aos ex-escravizados negros, isso sob o discurso racista do branqueamento da população brasileira.

Racismo e luta de classes

Segundo o sociólogo Florestan Fernandes, enquanto o imigrante branco praticamente monopolizou as oportunidades de trabalho e ascensão social, o negro foi relegado para ocupações marginais, com pouca ou nenhuma mobilidade social. Ao negro restava, então, duas alternativas irremediáveis: aceitar a incorporação à “escória” do operariado urbano ou procurar na “vagabundagem” e na “criminalidade” meios de sobrevivência. Para ele, sobrava o “trabalho sujo”, ou mais precisamente, “trabalho de negro”, bem como os mocambos e cortiços para morar.

Raça e classe social, portanto, na perspectiva estrutural que estamos propondo, são elementos absolutamente indissociáveis. O que verificamos é que o racismo, além de ser marcado pela ideologia, é uma tecnologia de poder determinante do Estado na produção de vidas matáveis, à medida que transforma uma parte da população em perigosa, incorrigível e descartável.

Violência policial: política racista de estado e resquício da escravidão

Na manhã do dia 20 de outubro a polícia assassinou mais um jovem negro, Gabriel Augusto Hoytil de Araújo tinha 17 anos e estava comendo sua marmita em dos becos do Moro do Piolho,no bairro do Campo Belo, zona sul de São Paulo.

Segundo relatos de testemunhas: “Entraram dois policiais disfarçados no beco gritando ‘perdeu!’, só que o pessoal do tráfico não estava nesse local. Só tinha gente que não tinha nada a ver e correram assustados. O Gabriel estava com um marmitex na mão e o policial atirou na cara dele. Nós escutamos um policial falar para o outro: ‘não era para você atirar nele”. 

Surge a pergunta: como a polícia confunde uma marmita com uma arma de fogo? Mas a verdade é que a polícia não confunde nada, nem marmita com arma, nem guarda-chuva com arma. A polícia sabe identificar seus inimigos, pobres e pretos e os elimina. 

A chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros no Brasil em 2019 foi de 29,2, enquanto a da soma dos amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2. 

Os negros representaram 77% das vítimas de assassinato no país de acordo com o infográfico sobre “Violência e Desigualdade Racial no Brasil”, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Como disse a artista Anarka, em território inimigo, em relação a como é ser uma pessoa negra dentro do sistema capitalista: “Sou estrangeira num país que se ergue à minha custa. Perseguida como Anastácia, mas não falta astúcia. Corpo preto alvejado pra todo lado com aval do Estado” 

Corpos negros alvejados, abatidos, caídos. Vidas ceifadas, sonhos interrompidos. Não são erros de policiais que “passaram do ponto” ou agiram sob “violenta emoção”. Não são simplesmente crimes cometidos por determinados agentes estatais e que devem ser apurados. 

Antes de tudo, estamos diante de uma política de Estado. Uma política de extermínio que tem no racismo estrutural a razão de sua existência e que coloca os jovens negros das periferias, literalmente, entre a vida e a morte.