Caso Moïse e a questão imigratória no Brasil

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Sérgio D. Peducia e Erick Padovan


CAMPINAS (SP) – O ano de 2022 mal começou e o Brasil foi testemunha de uma barbárie cometida contra um imigrante no país. No último dia 24 de janeiro, o jovem congolês Moïse Kabagambe foi amarrado e morto a pauladas por quatro homens, quando compareceu ao quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro, para cobrar duas diárias não pagas pelo serviço prestado. 

O crime provocou uma comoção nacional: milhões de pessoas compartilharam em suas redes sociais manifestações de apoio e de solidariedade à família de Moïse, e foram às ruas de várias cidades do país para mostrar indignação contra o racismo e a xenofobia, expressos nesse assassinato. A imprensa burguesa nacional e internacional, se viram obrigadas a veicular em peso a notícia dada à proporção que o caso tomou junto ao povo brasileiro. 

Kabagambe chegou ao Brasil como refugiado político com a sua família em 2014, fugindo da guerra e da fome na República Democrática do Congo. Como tantos outros que chegaram aqui, o jovem de 24 anos, além de deixar para trás o seu país de origem, teve que se adaptar não só a uma nova cultura, como também a um cotidiano marcado pela xenofobia e pela discriminação racial, diferentemente do propagado pela grande mídia e pelos capitalistas – que o Brasil é, supostamente, uma democracia racial. 

Em entrevista concedida aos jornalistas, a congolesa Ivana Lay afirmou que uma das reclamações de Moïse era receber menos que os seus colegas de trabalho pelo mesmo serviço prestado. Para ela, o filho foi vítima de mais uma superexploração a que os patrões submetem os trabalhadores imigrantes no Brasil. Esta superexploração que é a base de funcionamento do capitalismo, e que foi aprofundada no Brasil especialmente após a reforma trabalhista de 2017. 

O assassinato de Moïse Kabagambe trouxe à tona uma realidade pouco conhecida ou ignorada pela maioria da população: a vida dos refugiados e dos imigrantes no Brasil, no século XXI. Haitianos, angolanos, sírios, palestinos, senegaleses, venezuelanos e outras nacionalidades e grupos étnicos têm escolhido ou sendo enviados ao nosso país como uma terra de oportunidade para a reconstrução de suas vidas. 

Por que o Brasil, um país conhecido pela desigualdade social e econômica, é um dos destinos de acolhimento de refugiados no mundo? O país tem estrutura para receber estrangeiros que aqui querem viver?

Antes de tudo, é bom lembrar que de acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), refugiado é todo o migrante internacional forçado a cruzar as fronteiras nacionais de seus países de origem ou em territórios de outros para buscar proteção. E os motivos são vários: conflitos internos, internacionais ou regionais, perseguições decorrentes de regime político repressivo, violações de direitos humanos. Além de questões étnicas, culturais e religiosas, desigualdade socioeconômica, altos níveis de pobreza e miséria, sobretudo a instabilidade política gerada pelo neoliberalismo e o imperialismo, também são outros fatores que obrigam o deslocamento de diversas populações ao longo do planeta. 

O Brasil, ao longo de sua história, recebeu diferentes grupos étnicos que vieram povoar o país desde a invasão europeia, cujo sistema econômico escravocrata forçou a vinda de diferentes povos do continente africano sob condições subumanas. Não se pode esquecer dos povos indígenas que já estavam estabelecidos no continente e que, num primeiro momento, também sofreram o mesmo processo de escravização. Mais tarde, entre os séculos XIX e XX, vieram outros grupos europeus e asiáticos para “substituir” a mão de obra existente – o que, na verdade, foi um processo de embranquecimento promovido pelos governantes do país. 

Desde então, o fluxo migratório internacional em terras brasileiras sofreu uma desaceleração após a Segunda Guerra Mundial, com recepções esporádicas de alguns grupos que divergiam politicamente nos seus países de origem – especialmente dos provenientes das ditaduras militares da América Latina e outras localidades. 

O ponto de partida da institucionalização de uma política voltada aos refugiados no Brasil começou no segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), no final dos anos 1990, com a criação da Lei 9474/97, que substituiu o Estatuto do Estrangeiro, concebido na ditadura militar, atribuía ao estrangeiro uma perspectiva de potencial ameaça ou perigo, pautada na ótica da segurança nacional, uma política baseada na xenofobia, semelhante à praticada em larga escala atualmente pelos EUA.

Apesar dessa lei e a criação do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), pouco se avançou para a política migratória no país, uma vez que a lei sobre refugiados de 1997 não foi suficientemente estruturada devido à ausência de uma política de integração – desdobramento necessário da política de admissão formulada. Em outras palavras, naquele momento, ainda não existia efetivamente uma política para os refugiados acolhidos no Brasil. 

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a política externa passou por ajustes de programa em relação à administração anterior. As alterações mais significativas estavam relacionadas à ênfase e aos meios buscados para a inserção do Brasil no cenário dos grandes países capitalistas. Uma dessas alterações foi a cooperação Sul-Sul, a partir da aproximação com países em desenvolvimento e emergentes, com o objetivo de obter vantagens políticas e econômicas, e no G-20 (19 maiores economias do mundo mais a União Europeia), com o intuito de liberalizar o comércio entre estes países. 

O Brasil passou então a exercer uma posição de liderança na questão “humanitária”, mas o maior exemplo dessa política foi a “estabilização” do Haiti, em que foram enviados recursos militares para este país com intuito de ajuda humanitária, mas que posteriormente foram descobertas diversas ações criminosas e desumanas praticadas nesta missão, fazendo com que essa política de ajuda humanitária, desenvolvida por países capitalistas sobre países em crise, seja um política oportunista visto os verdadeiros interesses por trás da ajuda e até mesmo sobre como essa ajuda chega para a população local.

Um exemplo para entender a cortina de fumaça feita a partir de ajudas humanitárias é a política de Estado dos EUA. Recentemente, 2020, os EUA se empenharam a desestabilizar o governo bolivariano da Venezuela. Com o discurso de ajuda para crise causada em grande parte pelos próprios EUA, enviou caminhões por meio da Colômbia (aliada dos EUA) que foram recebidos na fronteira pela oposição de direita venezuelana, que arquitetava um golpe internacional contra o governo, mas que não foi bem sucedido.

Na questão da acolhida a imigrantes, o Brasil teve um papel diferente de quando enviou tropas ao Haiti, com um acolhimento mais voltado aos direitos humanos, acabou virando referência para receber imigrantes e refugiados latino-americanos e de regiões em grave crise. Um dos eixos principais de tal política seria o enfoque regional do programa de reassentamento, mas começaram a surgir dificuldades com a integração local dos reassentados, sendo que a própria ONU reconheceu a limitação do Brasil para satisfazer as necessidades deles.

Apesar da liderança do Brasil e do financiamento realizado pelos Estados Unidos, pela Noruega e pelo Canadá – até como forma de compensação pela política intervencionista e anti-imigração – para a implementação dos programas de reassentamentos, os países da América do Sul pouco fizeram em termos de acolhimento, a começar pelo contingente de colombianos. 

Para reverter essa situação, em 2007, o governo brasileiro ampliou o programa de reassentamento no âmbito regional, quando decidiu receber cem palestinos vindos da Jordânia e acolhidos no Iraque anteriormente, já que o ACNUR havia fechado o campo de refugiados de Ruweished, localizado na fronteira entre esses dois países do Oriente Médio. 

No entanto, o processo de integração local dos palestinos não foi fácil, especialmente pela diversidade cultural entre eles e em relação ao Brasil. Inicialmente instalados, em sua maioria, em Mogi das Cruzes (SP) e Santa Maria (RS), esses refugiados apresentaram uma série de reivindicações para serem contempladas pelo governo brasileiro – sendo algumas delas atendidas. 

É relevante ter em conta que a experiência de reassentamento com os colombianos revelou-se menos desafiadora, se comparada à dos palestinos, devido à proximidade sociocultural entre aqueles e os brasileiros, por serem da mesma região; e, também, a linguística com maior facilidade para o aprendizado da língua portuguesa. 

Não se pode resumir a situação dos refugiados no Brasil apenas à situação dos colombianos e dos palestinos, pois ambos os povos foram as primeiras experiências do programa de reassentamento solidário como parte integrante da política externa brasileira, cuja imagem internacional era a promoção do país como defensor dos direitos humanos. Além disso, outros grupos étnicos chegaram até aqui posteriormente, apresentando novas demandas aos agentes locais. 

Com o governo de Dilma Rousseff (PT), foram apresentadas uma série de dificuldades técnicas e de articulação política que provocaram uma série de retrocessos, atingindo também a pauta sobre os refugiados no país. E, após esse período, o golpe político de Michel Temer e a ascensão de fascistas aos Poder, com Jair Bolsonaro, conduziram o desmonte e o aniquilamento dos direitos humanos, já fragilizados, além do isolamento do Brasil no cenário internacional. 

O assassinato do congolês Moïse Kabagambe mostrou que uma política de acolhimento aos refugiados no Brasil só será efetiva quando forem levadas em consideração as vivências, as percepções e as experiências dos próprios estrangeiros que aqui chegam, por meio do combate ao racismo, à xenofobia e à exploração trabalhista, além da construção da concepção de classe que deve unir os trabalhadores em qualquer território do mundo.