Os evangélicos da teologia da libertação: o pastoreio enquanto forma de militância

1371

Lúcio Franco 

Salvador/BA

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil conta com 30% de sua população evangélica. Setores ligados à religiões evangélicas participaram ativamente da vitória de Jair Messias Bolsonaro em 2018, por conta do uso das fake news, de seu discurso anti-comunidade LGBTQIA+ e conservador. Contudo, há um setor mais à Esquerda dentro do evangelho, a exemplo da Aliança de Batistas do Brasil e a Igreja Batista Nazareth, em Salvador – BA. E, é justamente com a co-pastora Camila Oliver, professora da Universidade Estadual da Bahia, doutora em Comunicação e Semiótica, que será conduzida a nossa entrevista.

A Verdade – De qual forma a história da Igreja Batista Nazareth se relaciona com a ditadura civil militar brasileira?

Pastora Camila Oliver – A Igreja Batista Nazareth nasceu a partir do posicionamento de jovens que compunham a mocidade da Igreja Batista 2 de Julho, em oposição às questões da opressão na ditadura burgo-militar brasileira.  Assim, no dia 19 de setembro de 1974, 17 jovens do grupo da Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho entregaram um Manifesto escrito por eles para a direção da igreja criticando a postura do seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti. Entre as posturas criticáveis está a acusação de “comunistas e perniciosos” feita pelo referido pastor a membros da igreja.

Havia, naquele momento, jovens engajados no movimento estudantil, que participavam de igrejas batistas, as quais  inclusive perseguiam os membros opositores. Vale ressaltar que essa prática não ocorria apenas nas igrejas batistas, mas, nas igrejas cristãs de modo geral. As igrejas cristãs tiveram ampla atuação no período da ditadura burgo-militar no Brasil tanto apoiando a ditadura e perseguindo os seus próprios membros, como atuando na defesa dos direitos humanos e se colocando em oposição aos desmandos dos militares. O livro “As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar: Dos abusos do poder à resistência cristã” organizado pela professora Magda Cunha em parceria com outras pessoas que colaboraram na Comissão da Verdade, apresenta-nos essas perspectivas. 

O nascimento da Igreja Batista Nazareth, cujo lema é “Resistência, Luta e Fé”, é exemplo dessa resistência cristã. Na assembleia citada acima, uma daquelas jovens (que veio a ser uma das fundadoras da IBN) foi silenciada e disse que “onde não era ouvida, não permaneceria”. Outros jovens acompanharam aquela irmã em sua saída da Igreja 2 de Julho. Esses jovens buscaram um espaço que estivesse em sintonia com suas ideias. Esses homens e mulheres em momento algum negaram a sua crença nos princípios Batistas, continuariam com uma Igreja de base neotestamentária, em consonância com essa fé, concordando com a plena autonomia das igrejas locais, repudiando qualquer ingerência na sua economia interna.

No dia 14 de fevereiro de 1975, ocorreu a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor”. Lucas 4:18 – 19.9 Esse passou a ser o texto básico da filosofia de Nazareth. Para o grupo, a Igreja tem como missão a atuação profética no mundo, cabendo a ela o combate à injustiça, denunciando a corrupção, desequilíbrio do sistema social e o autoritarismo religioso, acreditava que o mundo da Igreja e o mundo dos homens coexistem num mesmo espaço interferindo-se mutuamente. Definiu que para exercer a consciência cristã era fundamental a liberdade plena.  Por essa sua missão, a IBN permaneceu pouco tempo vinculada à Convenção Batista, sendo expulsa por: “prática de mundanismo e comunismo.”

A Verdade – O Evangelho hegemônico acusa a Esquerda brasileira de ser contra as regras de Deus. A maioria evangélica foi responsável pelo avanço do conservadorismo. Vocês estão no meio desse conflito. Qual é a sensação?

Pastora Camila Oliver – Temos que tratar disso no âmbito do discurso. Não necessariamente isso tem a ver com o texto bíblico e, muito menos com o que entendemos por “ser cristão ou cristã”, mas sim com uma moral social, fazendo com que o discurso cristão hegemônico vociferado por essas grandes  igrejas sirva como chave hermenêutica para a dominação capitalista, termos uma mão de obra barata, desqualificada. Todo discurso bíblico deve ser olhado a partir de um contexto social. 

Na Igreja batista Nazareth, como dissemos antes, nossa chave hermenêutica é a partir do povo oprimido, com o olhar do Jesus nazareno, que esteve ao lado dos pobres, das mulheres, dos marginalizados e das marginalizadas. 

Esse é um conflito em que a nossa atuação precisa se dar na busca pela transformação da realidade concreta, mas também,  na disputa do discurso, pela chave hermenêutica. Quando você lê a bíblia pela perspectiva do povo oprimido, você devolve ao povo o direito ao sagrado e, assim, devolve poder aos pobres. Todos os corpos podem ter direito a Deus, ao sagrado, seja ele qual for. A teologia dominante é a da expiação, do sacrifício, que você só será liberto após chegar aos céus, que a terra é lugar de sofrimento. A nossa teologia é a da libertação, da construção do Reino de Deus na Terra, garantindo aqui dignidade de vida para todas as pessoas: “para que todas as pessoas tenham vida e vida plena” (João 10:10). 

A Verdade – Como as teologias negras, feministas, queer podem contribuir para o avanço e continuidade da teologia da libertação?

Pastora Camila Oliver – Elas são o avanço e a continuidade da Teologia da Libertação. A TL tem em sua base os conceitos  marxistas, de superestrutura e infraestrutura, opressor/oprimido… A teologia negra, por exemplo, também tem esse olhar e avança situando a teologia para além da classe (mas, sem nunca perdê-la de vista), no seu aprofundamento para os corpos negros. Se falamos em teologia ecofeminista ou mulherista, teremos esse aprofundamento para a questão de gênero, numa  busca com o rompimento da leitura patriarcal da Bíblia, a qual é base ideológica do capitalismo. Em alguns momentos, a teologia da libertação chega a ter um olhar androcêntrico, falando do Deus dos oprimidos e não das oprimidas. 

Todas essas teologias são importantes para virar a chave hermenêutica, nos permitindo olhar a bíblia a partir da luta de classes e das opressões do sistema capitalista.

A Verdade – És a primeira mulher pastora da Igreja Batista Nazareth, ainda que a luta feminista na mesma seja anterior a sua entrada. Percebes alguma mudança de prática na associação, cultos, entre os irmãos?

Pastora Camila Oliver – Já estou em Nazareth como membra há um certo tempo. E a IBN sempre apoiou o ministério feminino, inclusive, participamos (presença do pastor Joel Zeferino) da ordenação da primeira mulher pastora batista. Sempre tivemos pastoras participando dos cultos, celebrando a Ceia… Apenas, não houve o momento da consagração/ordenação de uma pastora mulher  porque até ali não havia alguém que tivesse manifestado a sua vocação e desejo de servir no ministério pastoral. Todavia, sempre entendemos a importância e a necessidade dessa representatividade, que não só falemos dessas pautas. Em tão pouco tempo da minha ordenação/consagração enquanto pastora voluntária, já é perceptível o quanto muda a visão interna e externa da igreja, inclusive quando se fala de violência dos corpos das mulheres, passa a ser um rompimento, falando muito além de um discurso, porque está ali um corpo que sente essa violência. Nazareth nasce da voz de uma mulher, de uma frase emblemática de Liliane: “Onde não sou ouvida, não permanecerei.”

A Verdade – Você falou de ser co-pastora voluntária. Vês isso como uma desvalorização do seu trabalho, sendo ele, não pago?

Pastora Camila Oliver – Não vejo assim. Nós tivemos uma longa discussão e entendemos, enquanto igreja, que trabalho não pago não deve ser menos valorizado, nós cumprimos o tempo que podemos, temos outros trabalhos para nos manter. Eu, por exemplo, não tenho interesse em deixar o meu trabalho enquanto professora da UNEB, dedico meu tempo ministerial enquanto militante, como você dedica o seu ao escrever essa matéria para o Jornal A Verdade.