O jornal A Verdade entrevistou Poliana Souza e Juliete Pantoja, da Coordenação Nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), sobre a conjuntura nacional, em especial a política econômica do Governo Federal. Este debate, da forma como é apresentado pela grande mídia, parece algo distante da realidade do povo pobre. Mas, nesta entrevista, as companheiras do MLB mostram qual a relação entre o que o Governo decide fazer com as contas públicas e como isso se reflete no dia a dia da maioria das famílias brasileiras.
Queops Damasceno | Redação
A Verdade – Desde o governo de Michel Temer, passando pelo governo do fascista Jair Bolsonaro, o Brasil vive sob a lógica do teto de gastos em relação aos investimentos públicos em áreas como saúde, educação e habitação. Agora, o quinto governo do PT acaba de aprovar no Congresso Nacional o chamado “novo arcabouço fiscal”, que nada mais é do que a atualização da mesma política de restrição de investimentos. Qual a opinião do MLB sobre isso?
Juliete Pantoja – Primeiro, é importante dizer que esse novo arcabouço fiscal é proposto com a justificativa de controlar o crescimento da dívida. Porém, o que a gente deve fazer na realidade é questionar a dívida em si. Porque essa dívida pública consome quase metade do orçamento público geral do nosso país no ano e faz com que, há décadas, o nosso povo já viva sem conseguir usufruir de tudo que produz. Essa dívida é extremamente danosa e representa um processo de transferência de recursos públicos para o setor privado e para o sistema financeiro.
E agora, com esse novo arcabouço fiscal, são propostas penalidades caso o crescimento do país não seja maior que o superávit primário, justamente para que o governo nunca deixe de pagar a dívida. Mas a lógica do governo permite que ele deixe de pagar o piso dos profissionais de enfermagem, deixe de investir no Funded, que é o fundo da educação, deixe de construir novas moradias. Ou seja, que ele pode deixar de investir em todas as áreas sociais. Essa é uma lógica contrária a que nós defendemos, que é a que os recursos públicos devem servir para o investimento que melhorem as condições de vida do nosso povo.
Até porque, o Estado tem maior capacidade de investimento porque pode esperar o retorno a longo prazo, enquanto a iniciativa privada só investe a curto prazo, pois ela quer gerar um lucro imediato e independente de favorecerem o povo. Investimentos que favorecem o povo são, por exemplo, campanhas de reestruturação de saneamento, investimentos de transformação das condições precárias das cidades, que precisam ser feitos e que só serão feitos pelo Estado, pois só darão retorno a longo prazo, não em dois ou quatro anos. Obras grandes, estruturantes de verdade, e que as nossas cidades precisam, mas que nesse novo arcabouço fiscal não têm o menor espaço.
Além disso, se a gente tem uma política que impacta tanto o nosso povo, o correto seria que o povo pudesse opinar e que a gente tivesse uma administração direta desses recursos. O arcabouço fiscal está sendo debatido em espaços que não são acessíveis ao nosso povo. Ele saiu do Governo Federal e foi levado à Câmara dos Deputados, que fez uma série de alterações que prejudicam ainda mais a capacidade de investimento do país.
O que tem existido em torno desse arcabouço fiscal é uma política que não privilegia o povo, que vai congelar os investimentos mais uma vez e que precisa ser derrotada nas ruas! Essa é a nossa opinião nesse momento e é por isso que temos denunciado e mobilizado os sem-teto e o povo pobre para barrar esse arcabouço, que foi votado, mas que ainda pode ser derrotado se o nosso povo for às ruas e se colocar para defender a soberania do país.
Poliana Souza – O arcabouço fiscal é apenas um novo teto de gastos. Ou seja, uma política que mantém, como prioridade número um, o pagamento da dívida pública, porque isso beneficia os banqueiros. Além disso, é um novo teto de gastos, já que congela o limite de investimentos nas áreas sociais. Essas são as áreas que realmente poderiam beneficiar o povo brasileiro, caso a política econômica do governo não priorizasse atender os super ricos com prioridade. Estamos falando de educação, saúde, habitação, cultura, transporte, saneamento básico e muitas outras áreas sociais.
Nós, o povo brasileiro, não precisamos de teto de gastos, nós precisamos de teto para morar. E manter essa política, que vem desde Temer, desde o golpe de 2016, é declarar que não vai modificar nada na estrutura de profunda desigualdade social do país. É dar como fato consumado de que não vai avançar em nada na construção da reforma urbana, por exemplo. Que não vai fazer a transformação mínima necessária que o país precisa para acabar com déficit habitacional que afeta mais de oito milhões de famílias.
Que medidas concretas o Governo Federal precisaria adotar para resolver essa falta de moradia no Brasil?
Juliete Pantoja – O MLB defende uma profunda reforma urbana para pôr fim a este mal. Essas oito milhões de famílias que não têm tem casa ou vivem em condições precárias precisam que o poder público invista em soluções para a falta de moradia, mas também os problemas estruturantes das cidades. Tem que ter a casa e posto de saúda, creche e escola na região. É necessário investir em infraestrutura, no saneamento básico, na mobilidade urbana, com transporte público para que as pessoas possam sair de casa em busca de emprego.
Mas o governo não será capaz de fazer esses investimentos de longo prazo se não enfrentar os especuladores, os grandes empresários, o sistema financeiro, que levam grande parte dos recursos públicos. É preciso mudar essa política que continua garantindo o lucro dos grandes capitalistas em detrimento dos investimentos que beneficiariam todo o povo brasileiro.
Poliana Souza – Para resolver o problema de moradia em nosso país, é necessário enfrentar a especulação imobiliária de frente. Como pode existir tanta gente sem casa com tatos imóveis abandonados? É necessário que o governo encare o problema de frente, que faça uma profunda reforma urbana, que escute o povo. É necessário que o governo não utilize de programas como o Minha Casa Minha Vida para alimentar o capital das mega construtoras, que só visam o lucro, e não a vida. O governo precisa ter como prioridade colocar investimentos para que os movimentos façam a gestão e construção de novas habitações e a requalificação de imóveis abandonados. Isso evitará que o MCMV seja apenas uma repetição malfeita de um programa que não foi no centro da questão e não resolveu o problema.
A política de governos anteriores, que tinham como centro jogar o povo para periferias cada vez mais distantes e sem estrutura, não deve ser repetida. É necessário que tenha investimentos para regularização de comunidades que se formaram a partir da autoconstrução nos últimos anos. Vale ressaltar que os movimentos de moradia construíram mais casas que o governo nos últimos dez anos.
A autoconstrução é uma das maneiras de se enfrentar o problema do déficit habitacional num país que é gigante. O povo constrói a partir da necessidade e constrói casas de qualidade, visando sua qualidade de vida, e não o lucro. O nosso povo é diverso e a produção de moradia precisa pensar sobre isso. Alguns necessitam de casas com quintais, outros com três e até quatro quartos, de acordo com a composição familiar de cada um. Esse modelo padrão de habitação adotado pelo Governo é insuficiente. Nos últimos anos, a política habitacional falhou muito e o que garantiu moradia para o nosso povo foi também a autoconstrução.
Em Minas Gerais, por exemplo, onde nenhum programa do Governo funcionou, nos últimos dez anos, os movimentos sociais construíram mais de 30 mil casas, resolvendo, assim, o problema de moradia de milhares de famílias sem-teto.
Um grande exemplo de autoconstrução são as mais seis comunidades que compõem o Vale das Ocupações, no Barreiro, em Belo Horizonte. Uma delas é a Ocupação Eliana Silva, que completa 11 anos de vida e resistência, e onde eu moro desde o início. A Ocupação Eliana Silva construiu mais de 300 casas, creche comunitária, horta, espaços coletivos e caminha agora para sua regularização definitiva. O processo de regularização fundiária para essas comunidades precisa acontecer. O governo precisa levar em conta o acúmulo de anos de luta desenvolvido pelos moradores.