O direito à informação em saúde mental chega à periferia?

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O direito de cuidados em saúde mental é garantido pela Constituição Federal para toda a população, pelo menos em teoria. Entretanto, a realidade prática, material e social é bem diferente. Exploração capitalista é a principal causa do aumento de doenças ligadas à saúde mental.

Jefferson Ramos | Manaus*


OPINIÃO – Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), mais de 300 milhões de pessoas no mundo sofrem com depressão, sendo esta a principal causa de incapacidade em todo o mundo. No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam 18,6 milhões de pessoas com ansiedade e 13,5% da população com depressão, sendo o nosso país aquele com a maior prevalência de deprimidos da América Latina.

O direito de cuidados em saúde mental é garantido pela Constituição Federal para toda a população, pelo menos em teoria. Entretanto, a realidade prática, material e social é bem diferente.

Para as pessoas que vivem em locais mais vulneráveis socioeconomicamente, os diagnósticos relevantes sequer costumam chegar, seja pelo tabu envolvido nesses assuntos ou pela falta de acesso, informação e atendimentos e tratamentos de qualidade.

A questão é ainda mais severa quando falamos de trabalhadores que habitam periferias e favelas, lugares que lidam diariamente com a violência, discriminação, racismo, além de outras formas de opressão. isso tudo junto com locomoções prolongadas, trabalhos precarizados e a constante guerra de classes aberta e escancarada, materializada na brutalidade policial que muitos trabalhadores infelizmente ainda vivem na pele. 

O acesso à saúde mental (ou mesmo à informação sobre saúde mental) infelizmente ainda é de acesso privilegiado que apenas os muitos ricos e setores da classe média. A informação sobre saúde mental chega rápido aos ouvidos dos mais ricos, coisa que como profissional é fácil de identificar visto as preocupações que essas pessoas têm com suas crianças assim que apresentam os primeiros sintomas psicológicos. Enquanto na periferia, normalmente, descobre-se (quando se descobre) um transtorno apenas na idade adulta, depois de uma vida inteira em sofrimento “silencioso”. 

Nas periferias e favelas, muitas pessoas entram em estado de adoecimento psicológico, desestabilizam-se emocionalmente e por consequência desorganizam-se economicamente e socialmente, o que afeta suas vidas na forma de um longo e sofrido ciclo vicioso.

Em sua maioria, essas pessoas sequer entendem que essa realidade psicológica está diretamente relacionada com a realidade material e as violências estruturais nas quais estão inseridas. Quando entendem, costumam enfrentar severos obstáculos sociais na obtenção de serviços psicológicos de qualidade, o que favorece o agravamento do quadro na maioria das vezes.

Anteriormente, por exemplo, era comum que homens que sofriam de Transtorno Bipolar (neurodivergência associada à desorganização do humor e do nível de energia física e que compromete severamente o cérebro, na ausência de tratamento) recebessem diagnósticos errôneos de ‘alcoolismo’ ou ‘abuso de substâncias’ (pela alta frequência com que esses dois diagnósticos andam juntos, por conta do transtorno não tratado levar a essas formas não funcionais de lidar com os déficits e excessos do transtorno). O que os levava a sofrer duplamente: tanto com o adoecimento em si, quanto com o estigma social associado a suas imagens rotuladas de “fraco”, “drogado”, “vagabundo”, “preguiçoso” etc.

Entretanto, qualquer que seja o diagnóstico formal em saúde mental, é sempre necessário destacar seu aspecto político, econômico e social. Um diagnóstico em saúde mental não é um diagnóstico puramente individual, com exclusividade na dimensão pessoal do seu surgimento.

A sociedade tem um peso significativo no que se refere à saúde mental das pessoas, no bem viver delas. A sociedade brasileira, especificamente, marcada por desigualdades, violências, preconceitos e discriminação, vai aos poucos produzindo sofrimento estrutural, organizado, planejado e injustamente distribuído, com as camadas mais pobres e vulneráveis da sociedade, ficando com os maiores fardos sobre seus ombros.

Há inclusive pesquisas que demonstram que muitas vezes é o estigma social o que mais traz sofrimento quando falamos de diagnósticos em saúde mental, ainda mais que o próprio adoecimento psicológico em si. A culpa atribuída a si por ter um diagnóstico, a vergonha, o medo de ser discriminado, tudo isso faz parte dessa lógica que retroalimenta o adoecimento.

O estigma afeta negativamente o prognóstico do tratamento, nega oportunidade de trabalho, de socialização, além de impedir a autonomia e realizações de objetivos de vida. Precisamos romper radicalmente com o ‘modelo médico da deficiência’ que vê na estrutura biológica das pessoas a causa última dos problemas em direção a um ‘modelo social da deficiência’, que prioriza a análise do contexto social da pessoa, a partir das relações que esta mantém com ele e vice-versa. 

É preciso entender, por exemplo, como as estruturas sociais que antecedem nossa vivência aqui penetram a formação pessoal de nossas mentes, visto que problemas psicológicos são questões de saúde pública, referente à vida em sociedade. É urgente o investimento em políticas públicas que possibilitem o cuidado da saúde mental estendido para todos, verdadeiramente universal e de qualidade, além do reparo radical nas instituições de saúde que durante o desgoverno fascista anterior foram duramente atacadas e sucateadas em benefício da privatização dos setores de saúde.

Para não deixar morrer as reflexões do psicólogo, filósofo, padre jesuíta e revolucionário Martín-Baró (1942-1989), uma das vítimas do imperialismo espanhol em El Salvador, é preciso que os psicólogos acordem do seu sono pequeno-burguês e saiam de seus consultórios e laboratórios de marfim, de onde sonham com uma vida igual à dos burgueses e lidam apenas com ‘problemas individuais’, para assumirem como eixo central de sua prática, a opção preferencial pelas inquietudes e demandas dos oprimidos.

Só assim é possível comprometer-se com a construção de uma sociedade livre dessas injustiças. Em um mundo marcado estruturalmente por opressões, a perspectiva individual é paliativa e não vai à raiz de nenhum problema real a não ser ao enriquecimento pessoal e à manutenção exploração do capital.

*Psicólogo e Militante do MLB no Amazonas.