Entregador, quem é o dono da tua hora?

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Enquanto a empresa Uber teve como receita R$ 44 bilhões só no primeiro trimestre de 2023, um crescimento de 29%, os trabalhadores vivem uma realidade de superexploração.

Thiago da Nóbrega Medeiros | Brasília


TRABALHADORES – “Eu mesmo!”, grita o trabalhador precarizado. “Faço as horas que quero e ganho bem. Sou meu próprio chefe!”. Sabe quem concorda com você? Seus verdadeiros patrões, os donos das empresas por aplicativo. A pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que tem como associados Uber, Ifood, Zé Delivery e 99, revelou “dados” sobre as condições de trabalho dos entregadores e motoristas de transporte individual de passageiros.

Com chamadas sensacionalistas, os resultados da pesquisa apresentam trabalhadores remunerados em até seis salários mínimos, com jornadas de trabalho baixíssimas e ampla flexibilidade de expedientes. Vejamos alguns exemplos das mentiras apresentadas:

“Estima-se que a renda líquida dos motoristas, já considerando os custos, para 40 horas semanais, pode variar entre R$ 2.925 e R$ 4.756 por mês; para entregadores, entre R$ 1.980 e R$ 3.039.”

Essas mentiras não se sustentam, pois com uma análise mais a fundo das tabelas e gráficos presentes na pesquisa, observamos repetidamente a expressão “em corrida/em viagem”. A pesquisa faz o cálculo da remuneração e das horas trabalhadas somente pelo tempo em que o trabalhador está em tarefa. Só que o trabalhador fica disponível para a plataforma por muito mais tempo do que somente o que gasta realizando suas atividades. Não podemos deixar de levar em consideração o tempo de deslocamento entre uma corrida e outra e o tempo em que o trabalhador está com o aplicativo ligado, pois este trabalhador não está em “descanso”, mas sim disponível para a plataforma.

Pesquisadores do grupo Direito do Trabalho no Século XXI (Trab21), da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), produziram uma nota técnica apontando “graves inconsistências metodológicas” no documento da Amobitec.

“Uma análise da própria pesquisa demonstra que, na média, motoristas recebem entre R$ 1.056 e R$ 1.672 por mês, após custos, enquanto entregadores recebem entre R$ 480 e R$ 816”, afirma o documento.

A verdade do trabalhador

Enquanto a empresa Uber teve como receita R$ 44 bilhões só no primeiro trimestre de 2023, um crescimento de 29%, os trabalhadores vivem uma realidade de superexploração.

Os aplicativos de transporte chegam a ficar com 40% do valor da viagem, mas o trabalhador sozinho precisa arcar com o valor da gasolina, manutenção do carro, dados móveis para o celular, seguros e, para piorar, a grande maioria paga até o aluguel ou financiamento do carro.

A maior parte desses trabalhadores vive em condições precárias, sendo constantemente submetida a jornadas superiores a 12 horas diárias, adoecimento, baixo faturamento, falta de perspectiva, trânsito caótico e toda sorte de violências dos grandes centros urbanos. Bem diferente do que é propagado pela empresa como “o sonho americano”.

Abel Santos, entregador de aplicativo no Distrito Federal, diz que “é um trabalho degradante, sem direito a lazer ou férias, que tem como rotina de 10 a 12 horas diárias e trabalho nos sete dias da semana, 12 meses no ano”. Este trabalhador não para e acontece que, em apenas um ou dois dias na semana, ele trabalha menos, entre 6 e 8 horas. Se perguntar quando ele tirou férias, ele não vai se lembrar.

Há também o problema central da jornada dupla, pois, como a própria pesquisa apresenta, uma média de 42,5% dos trabalhadores destas plataformas ainda exerce uma outra atividade remunerada. Quando somadas as atividades, este trabalhador facilmente ultrapassar 60 horas de trabalho semanais.

Que vida é esta, deste trabalhador, que não tem tempo para descanso ou lazer, para sua família, para estudar? A vida de um patrão? Ou a vida de um trabalhador precarizado?

Uberização e luta de classes

Não é de se admirar que esta pesquisa tenha sido encomendada e financiada pela associação que conta com Uber, Ifood, Zé Delivery e 99, pois somente eles poderiam ter essas informações sobre tal processo produtivo. Os trabalhadores das plataformas recebem retornos vagos como “Você está indo bem!” ou “Você está abaixo do que é esperado!”, sem saberem com clareza que métricas estão sendo utilizadas para avaliá-los. 

A chamada uberização não deixa de ser mais uma ramificação do capitalismo, com sementes plantadas no início do século 20, na infame administração científica de Frederick Taylor, o Taylorismo. Um dos pontos principais desse modelo organizacional de trabalho é a centralização das informações sobre o processo de trabalho como competência exclusiva da gerência, para que esta tenha o monopólio sobre cada passo do processo produtivo e seu modo de execução.

Fica claro, aqui, que a ideia de que os trabalhadores das plataformas das empresas de aplicativo são “autogestores” ou seus “próprios chefes” cai por terra, já que estes têm à sua disposição um número limitado de informações sobre o processo produtivo em que estão envolvidos, sendo forçados a produzir de forma máxima para que possam satisfazer os feitios e melindres dos algoritmos das empresas que os “contratam”, correndo o risco constante de desligamentos automatizados ou punições por debaixo dos panos algorítmicos.

Agora que já vemos com clareza a relação direta da uberização com outras facetas do capitalismo, podemos afirmar que a luta contra a superexploração neste modelo de negócio e de trabalho é também a luta contra o modo de produção que nos explora. Nós, como classe trabalhadora, precisamos crescer nosso grau de organização e luta contra este modelo de sociedade explorador e reafirmar nosso compromisso revolucionário de construção do socialismo e enfrentamento de todas as “novas” facetas do capitalismo.

Matéria publicada na edição nº 278 do Jornal A Verdade.