Passados um ano e sete meses do covarde e brutal assassinato, o conflito de terras na região ainda não chegou ao fim. Apesar do Decreto nº 53.376, de 18 de agosto de 2022, em que o Governo do Estado declara de interesse social, para fins de desapropriação, o imóvel denominado Engenho Roncadorzinho, grupos econômicos ligados à exploração da região estão questionando sua validade na Justiça.
Thiago Santos* | Recife
BRASIL – Vivi uma parte da infância na Zona da Mata de Alagoas, na cidade de Colônia Leopoldina, sede da Usina Taquara. Aos nove anos, brincava com caminhão feito de madeira e lata de óleo (presente que minha mãe comprou na feira). Adorava o brinquedo. Lembro-me de brincar nas proximidades do canavial da usina, conduzindo o caminhãozinho por caminhos abertos pelas formigas na vegetação. Do nosso ponto de vista, era igualzinho às estradas de barro por onde os caminhões da usina passavam carregados de cana-de-açúcar.
Na época, brincávamos sem fazer ideia da exploração levada a cabo pelos usineiros contra os trabalhadores. Não tínhamos conhecimento dos conflitos agrários nem das violações praticadas contra o meio ambiente em nome do lucro dos proprietários das terras e da agroindústria.
A cidade da minha infância encontra-se separada de Pernambuco pelo rio Jacuípe, em cuja margem oposta está o município de Maraial (PE). Mais adiante, a 99 quilômetros de distância, fica a cidade de Barreiros, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, região igualmente produtora de cana-de-açúcar e que padece dos mesmos conflitos causados pela ganância de usineiros.
Trinta anos de distância separam as minhas brincadeiras de menino das de um outro garotinho de 9 anos que também deve ter ingenuamente corrido e brincado nos arredores do canavial sem saber da violência que ainda marca os conflitos agrários da região, do mesmo modo que ocorria trinta anos atrás, num ciclo de violência que já vem de muitos anos antes.
Jonatas de Oliveira dos Santos morava com os pais no Engenho Roncadorzinho, que pertencia à antiga Usina Santo André. A região enfrenta conflitos ocasionados pela disputa pelas terras que pertenciam à usina. Com a falência da agroindústria, o engenho está sob a administração do Poder Judiciário. Entre as dívidas apuradas, há débitos de natureza trabalhista dos ex-funcionários, que são, portanto, credores da massa falida.
Apesar de ex-funcionários morarem no local há mais de 40 anos, a Agropecuária Javari Ltda. arrendou o engenho e iniciou o plantio e colheita de cana-de-açúcar. Assim, o choque entre os interesses dos moradores e da agropecuária desencadeou o conflito.
Convencida de que não teríamos chances de estudar e ter uma vida melhor, minha mãe trouxe os filhos para a Região Metropolitana do Recife; ela teve como fazer isso. As duras condições e difíceis circunstâncias não vêm ao caso, é assunto para outra conversa.
Como mataram o menino Jonatas
A família de Jonatas não pôde fazer o mesmo. Seu pai, Geovane da Silva Santos, agarrou-se à luta, pois era sua única possibilidade. Tornou-se uma das lideranças da comunidade que vive no local e, em decorrência disso, passou a ocupar o cargo de presidente da Associação dos Agricultores. Afinal, lutando unidos, os membros da comunidade são mais fortes.
Em 10 de fevereiro de 2022, Jonatas estava alegre, cheio de vida. Em casa com sua mãe, seu pai, sua irmã e dois sobrinhos pequenos, estava feliz por mais um daqueles dias de descobrimentos, aventuras, aprendizados e brincadeiras. Só estava um pouco cansado. Pudera, havia gasto muita energia. Deitou-se no sofá e caiu no sono. O que teria sonhado naquele final de dia? Com certeza, todos iriam se divertir com as aventuras que iria relatar.
Mas os sonhos de Jonatas foram interrompidos pelo pesadelo da vida real. De repente, uma barulheira danada. Abriram a porta com violência. Homens estranhos entrando pela porta da frente e de trás. Não dava pra ver seus rostos, cobertos por capuzes. Um tiro foi disparado. Sangue. Gritaria, choro. Geovane, baleado, tenta fugir daquele cerco e procura ajuda. Os homens acordam Jonatas. Balançam o menino com violência. Ele não estava acostumado com tamanha brutalidade. Assustado, Jonatas entra correndo e chorando debaixo da cama, onde estava a mãe. Aflito, aquele menino indefeso não entendia nada do que se passava, ele precisava apenas do abraço mais protetor e carinhoso que ele conhecia.
Mas a vilania não tem limites. Aqueles homens perversos, que assustaram as crianças, balearam o seu pai e impuseram o medo à família, não acharam que já haviam feito mal o bastante. Jonatas foi alvejado por um tiro disparado pelos bandidos.
Passados um ano e sete meses do covarde e brutal assassinato, o conflito de terras na região ainda não chegou ao fim. Apesar do Decreto nº 53.376, de 18 de agosto de 2022, em que o Governo do Estado declara de interesse social, para fins de desapropriação, o imóvel denominado Engenho Roncadorzinho, grupos econômicos ligados à exploração da região estão questionando sua validade na Justiça.
A Agropecuária Javari ingressou com pedido de reintegração de posse (nº 0001328-82.2020.8.17.9000). O relator é o desembargador Dr. Stenio Jose de Sousa Neiva Coelho.
O assassinato covarde do menino Jonatas tramita na Vara Única da Comarca de Barreiros (nº 0000489-26.2022.8.17.2230). São autores do fato: Manoel Bezerra Siqueira Neto, Michael Faustino da Silva, Antonio Carlos da Silva e Marlison Matos Sales da Silva. A prisão preventiva foi decretada. Os mandantes, entretanto, seguem impunes.
A injustiça cometida contra Jonatas e todas as vítimas de conflitos fundiários no Brasil, como a irmã Dorothy Stang (assassinada no Pará, em 2005) e a Mãe Bernadete (assassinada na Bahia, em 2023), é produto de um modelo econômico baseado na propriedade privada das terras, usinas e dos meios de produção, no qual quem tem o dinheiro tem nas suas mãos e a seu serviço o poder, inclusive, de tirar a vida de pessoas inocentes. Por isso, lutamos pelo fim desse odioso e perverso regime. Lutamos pelo poder para o povo e pelo socialismo.
*Thiago Santos é presidente da Unidade Popular em Pernambuco e relator do caso do assassinato do menino Jonatas junto à Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE
Matéria publicada na edição nº279 do Jornal A Verdade.