Como sorrir se falta comida, falta saúde, falta dinheiro, falta dignidade, faltam dentes? Amarguras da vida dura e cruel. Uns têm tudo, inclusive facetas porcelanadas, e outros não têm nada, nem sequer uma limpeza dentária. Que sistema adoecedor é esse? Dinheiro maldito que compra sorrisos brilhantes artificiais, mas não garante a felicidade das pessoas.
Samara Martins* | Natal
OPINIÃO – Eu me formei dentista há cinco anos. A área odontológica ainda é muito elitizada, embranquecida. Se agarra a um conceito de saúde mercadológica e individualista, liberal. A saúde coletiva passa longe das prioridades, é o segmento mais menosprezado pelos dentistas em formação e formados. A saúde bucal para todos é um conceito distante, armazenado num texto de uma disciplina isolada.
Estar nesse espaço pode ser resistência, mas também adoecedor. Desde a faculdade, portanto, me pergunto por que escolhi a odontologia? O que essa profissão tinha a ver com o que eu acredito e defendo? Qual poderia ser a missão vinda disso? Hoje, talvez se apresente mais claro que o que me incomodava e ainda incomoda é que meu povo não pode rir, meus irmãos e irmãs negras não podem sorrir.
Numa pesquisa recente o dado “mulheres negras tem mais perdas dentárias” me inquietou de uma forma militante e profissional. Que ódio! O estudo foi realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), com o título “A boca travada no racismo, desigualdades raciais nas condições de saúde bucal”. A pesquisa constatou que a perda dentária em mulheres negras é 19% maior que em homens brancos, 14% maior que em homens negros. Entre as mulheres, as negras apresentam perda 26% maior que em mulheres brancas.
O estudo conclui o óbvio, sentido na pele por nós, mulheres negras. As iniquidades sociais (pobreza, educação, acesso a saúde, etc.) e discriminações de gênero e raça impactam na saúde geral e bucal. Os negros sentem biologicamente os efeitos do racismo institucional, estrutural e sistêmico.
Ao ler todo esse artigo me veio à mente os diários de Carolina Maria de Jesus, que, no dia 13 de maio de 1958 (Dia da Abolição da Escravatura) disse: “Já perdi o hábito de sorrir”.
Como sorrir se falta comida, falta saúde, falta dinheiro, falta dignidade, faltam dentes? Amarguras da vida dura e cruel. Uns têm tudo, inclusive facetas porcelanadas, e outros não têm nada, nem sequer uma limpeza dentária. Que sistema adoecedor é esse? Dinheiro maldito que compra sorrisos brilhantes artificiais, mas não garante a felicidade das pessoas.
Lembrei também Charlie Chaplin, fazendo graça das mazelas diárias: “O riso é um tônico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor”. E nem esse direito as mulheres negras têm. Chaplin diz ainda que “um dia sem riso é um dia desperdiçado”. Pois bem, quantos dias as mulheres negras perdem! Quão cruel é negar o riso. Quem sistema maldito é esse que lhe tira até os dentes?!
Minha missão é, portanto, como dentista e militante, garantir que mulheres pretas, as que mais sofrem com a perda dentária, possam viver numa sociedade justa e igualitária, e, ao mesmo tempo, possam sorrir, felizes, com dentes e alma.
*Samara Martins é odontóloga formada pela UFRN
Achei este post muito triste, mas como a compa disse “me inquietou de uma forma militante e profissional”. Foi potente a sua fala sobre esse assunto que pode até passar despercebido, mas está ali presente, mesmo quase invisível. Minha mãe é uma dessas mulheres que apesar de muita luta que travou durante sua vida, por conta dessa questão, ela também é impedida de sorrir por esses motivos. O tratamento dentário para todos é difícil e para pagar o tratamento é inviável, pois tem trocentas prioridades de sobreviver que já tomam todo o salário e ainda acaba devendo no meio do caminho. É bastante complicado quando nem esse direito ela e as milhares de mulheres negras tem.