Tirso W. Saenz nasceu em 12 de outubro de 1931, em Havana. Formado em Engenharia Química, decidiu permanecer em Cuba após o triunfo da revolução e colaborar com o governo revolucionário. Em 1962, após ocupar outros cargos de responsabilidade, foi designado para ser vice-ministro de Indústrias, quando o ministro era ninguém menos que Ernesto Che Guevara. Sobre esse período, escreveu o livro “O Ministro Che Guevara – Testemunho de um Colaborador”, cuja segunda edição será lançada em outubro pelas Edições Manoel Lisboa, em parceria com a UJR. Em Cuba, Tirso também foi vice-presidente da Academia de Ciências, presidente das comissões nacionais para o Uso Pacífico da Energia Atômica e para a Proteção do Meio Ambiente. Atualmente é professor convidado da UnB.
Caio Sad | Brasília
A Verdade: Você trabalhou ao lado do Che nos primeiros anos da revolução. Como isso aconteceu?
Tirso: Eu me formei engenheiro nos EUA e, em 1954, retornei a Cuba para trabalhar na multinacional americana Procter&Gamble. Lá, me saí muito bem; virei o chefe de pesquisas para desenvolver novos produtos, melhorar os produtos existentes, ver a concorrência do mercado, etc. Portanto, eu não tive nada a ver com o processo revolucionário. Detestava Batista [Fulgencio Batista, ditador cubano entre 1952 e 1959], detestava os crimes da ditadura, mas não tomava partido. Eu pensava que eu era um técnico e me preocupava apenas com meu trabalho e com minha família.
Em outubro de 1960, a Procter&Gamble foi nacionalizada por Fidel. Eu tinha uma carta para a embaixada americana dada pelo Mr. Gamble, vice-presidente da empresa em Cuba, para solicitar um visto e ir trabalhar com eles nos EUA. Fui à embaixada com a intenção de conseguir o visto, porém, ao ser desprezado pelo cônsul, decidi ficar em Cuba e, no dia seguinte, fui à antiga Procter&Gamble – já nacionalizada – para trabalhar.
Como já havia sido imposto o bloqueio econômico, começou a faltar matéria-prima. Minha tarefa foi – e eu era bom nisso – produzir produtos de higiene sem matéria-prima. Se algo não pode faltar em um mercado são produtos de higiene. Eu conhecia bem todas as questões técnicas para fazer sabonete, detergente, pasta de dente, cosméticos. Um dia me propuseram ser vice-diretor de refinação da indústria de petróleo. Eu falei: “Mas eu não sei nada de Petróleo”, ao que me responderam: “Mas você é engenheiro”!
Foi interessante isso porque eu, que não era um revolucionário, já estava dentro do processo revolucionário, comecei a conhecer revolucionários, a tratar com eles, conheci pessoas tão boas, tão interessadas, tão sacrificadas. O comunismo já não era para mim um monstro com os dentes afiados. Minha tarefa, então, era mais política do que técnica: eu devia criar um clima de confiança entre os engenheiros e os técnicos que ficaram, pois eu podia falar com eles, como engenheiro, de igual para igual.
Assim, me nomearam diretor da indústria de petróleo. Foi nesse período que tive meu primeiro encontro com o Che. Na rápida conversa, que durou cinco minutos, eu senti todo o apoio que ele me deu. Não só o apoio, mas a confiança que ele demonstrou. Che confiava nas pessoas, mas você tinha que ser digno dessa confiança.
Um tempo depois, no final de 1961, eu fiquei doente e, após um mês afastado do trabalho, quando voltei a trabalhar não foi mais para a indústria petrolífera, mas como vice-ministro da Indústria Básica. Foi aí que passei a trabalhar diretamente com o Che, que, então, era o ministro.
Quais eram os principais problemas da economia cubana naquela época?
A primeira medida da Revolução foi fazer a reforma agrária e, em seguida, nacionalizar as indústrias. Essas medidas provocaram o bloqueio econômico dos Estados Unidos. Isso provocou a falta de matérias-primas e outros produtos. Cerca de 50% dos médicos e 75% dos engenheiros abandonaram Cuba nesse período. Faltavam muitas pessoas com formação qualificada para o trabalho. Além disso, havia a sabotagem. Uma semana depois que eu assumi como vice-diretor da indústria de petróleo, no início de 1961, explodiram uma bomba em uma das refinarias; um mês depois, uma lancha pirata entrou e atacou outra refinaria, em Santiago de Cuba; semanas depois, em abril, Playa Girón [quando mercenários financiados pelos EUA tentaram invadir Cuba, mas foram derrotados pelo Exército Rebelde]. Depois disso, descobrimos agentes da CIA dentro das refinarias para fazer essas sabotagens.
Como o povo cubano e o governo revolucionário enfrentaram esses problemas?
A campanha de alfabetização, eu diria que é uma das coisas mais belas, lindas, que eu lembro da revolução. Os jovens da cidade que sabiam ler e escrever iam para o campo alfabetizar os camponeses. Aí se produzia uma alfabetização dupla, já que, durante o dia, o jovem trabalhava no campo, aprendendo sobre o trabalho agrícola, e à noite, eram os camponeses que aprendiam com os jovens alfabetizadores.
A educação cumpriu um papel importante em Cuba e também foi muito importante nos ministérios. O Ministério de Indústrias era uma grande escola. Desde o mais simples operário até o ministro [Che], todos estudavam. O próprio Che era médico, então, para atuar no Ministério de Indústrias, teve que estudar economia, matemática, contabilidade, etc.
Outra coisa fundamental foi a participação popular em todos os processos. Um exemplo: todas as fábricas tinham que ter um comitê de direção das suas atividades que fosse eleito e contasse não só com a participação de técnicos, mas dos melhores trabalhadores daquela fábrica. Era a participação da classe operária na direção da indústria. O povo participava da solução dos problemas, se sentia envolvido nesse processo. Quando você trabalha numa empresa capitalista, você não se sente participando; está fazendo o trabalho para ganhar um salário. Mas, no caso dos operários cubanos, eu estou fazendo este trabalho não para ganhar mais, mas para ver como resolvo os problemas de Cuba. Ou seja, é uma dimensão diferente que sente o próprio operário, pois sabe que está ali para ajudar no processo da revolução.
O que o levou a escrever o livro “O Ministro Che Guevara”?
As biografias do Che, ainda hoje, apenas tocam de passagem no papel do Che como ministro. Eu me dizia: “isso não está certo”, e pensava: “tenho que escrever um livro mostrando o Che como ministro”. Aí minha esposa me disse: “não fale mais que tem que escrever um livro, escreva!”. Então, sentei e escrevi. Eu tento mostrar no livro que ele foi um ministro fantástico, capaz de mobilizar as forças dos trabalhadores. Na primeira edição [publicada no Brasil em 2004], não abordei o aspecto ideológico do pensamento do Che, porque isso havia sido tratado por outras pessoas com muito louvor. Agora, decidi fazer uma segunda edição que tem um capítulo dedicado a isso, e nos outros capítulos incorporei novos elementos que têm a ver com isso também.
O que mais lhe marcou durante os anos de trabalho ao lado do Che?
Primeiro, o exemplo pessoal. Ele podia falar e fazer críticas porque ele mesmo era o exemplo do que se devia fazer. Seu pensamento crítico e autocrítico, de exigência com a disciplina, com a utilização dos recursos para evitar que houvesse a mínima possibilidade de corrupção. Che era o primeiro no trabalho voluntário que acontecia toda semana. O trabalho voluntário era para todos, inclusive para os dirigentes do Ministério, que tinham que trabalhar na indústria têxtil, cortar cana… Che cortava cana como um profissional!
Me marcou aquele homem que não usava recursos para nada, que era uma pessoa dedicada 100% à revolução, não só como ministro, mas também como membro da direção política, como membro do Conselho de Ministros, como chefe militar. E, ademais, um pensador e criador, um homem de ideias sobre como desenvolver o socialismo, particularmente em um país subdesenvolvido como Cuba.
As ideias do Che permanecem atuais?
Che morreu há mais de sessenta anos e segue sendo uma figura de caráter internacional. Eu creio que o mais importante seja a ideia que coloca o ser humano como o elemento central e decisivo em um processo de construção do socialismo. Ou seja, o futuro do socialismo está não só no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ou seja, de uma produção mais moderna, mas também no desenvolvimento das pessoas. É um processo de formação de um ser humano que não seja egoísta, que tenha uma visão social, que tenha consciência de que é membro de uma sociedade, que veja as coisas não só em benefício próprio, mas em benefício da sociedade, que esteja disposto a dar a vida pela pátria e a trabalhar cada vez mais. Para o Che, para se construir o socialismo tem que se tomar o poder e, junto com esse processo de atividade produtiva econômica, social, etc., ir formando o homem novo. Sem isso, não há socialismo.
Entrevista publicada na edição nº 279 do Jornal A Verdade.