Essa ideologia que exalta reis, generais e bilionários em detrimento do papel das massas trabalhadoras é muito nítida na chamada democracia burguesa, onde classes e forças políticas se organizam em partidos políticos para disputar as eleições. Nas disputas eleitorais, o eleitor vota preferencialmente numa personalidade.
Luiz Falcão | Comitê Central do PCR e Diretor de Redação do JAV
TEORIA MARXISTA – Durante muitos séculos, as cartas foram um dos principais meios de comunicação entre as pessoas. Nelas, batalhas eram descritas, sentimentos declarados e opiniões políticas esclarecidas. Por isso, muitos historiadores pesquisam as cartas de uma determinada época quando estudam alguns acontecimentos históricos.
Para os comunistas revolucionários, as obras de Karl Marx e Friedrich Engels – O Capital; Manifesto do Partido Comunista; Salário, Preço e Lucro; A Ideologia Alemã; Miséria da Filosofia; Anti-Dühring; A Situação da Classe Operária na Inglaterra; A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado; As Lutas de Classes na França; entre outras – são, sem dúvida, a principal fonte de estudo.
No entanto, pela frequência com que acontecia e pelas diversas questões discutidas, a correspondência entre Marx e Engels constitui um importante material para explicar várias posições que adotaram. Com efeito, estas cartas, além de expressarem a profunda amizade e o companheirismo entre esses dois grandes gênios da humanidade, contêm análises da situação política e destacam as lutas que ambos desenvolviam no movimento comunista internacional.
Sobre a popularidade
É exatamente numa carta dirigida a Wilhelm Blos¹ que Karl Marx deixa claro seu inconformismo com o interesse de muitas lideranças da Liga dos Comunistas na promoção pessoal, em vez de se dedicarem à propaganda das ideias revolucionárias. Vejamos um trecho de uma carta datada de 10 de novembro de 1877:
“Nós dois [Marx e Engels] não damos um tostão furado pela popularidade. Prova, por exemplo, que, por aversão contra todo o culto da pessoa, durante o tempo da Internacional nunca deixei a passagem para o domínio da publicidade das numerosas mensagens que chegavam de diversos países, reconhecendo meus méritos. Tão pouco respondi, salvo de tempos a tempos, a não ser aqui e além, com admoestações. A nossa primeira adesão, minha e de Engels, para a sociedade secreta dos comunistas aconteceu apenas com a condição de que tudo o que pudesse contribuir para o culto do prestígio fosse eliminado dos Estatutos …”. (www.marxist.org)
Numa carta a Franz Mehring, de 14 de julho de 1893, Friedrich Engels expressa esse ponto de vista de Marx ao comentar o apêndice Sobre o Materialismo Histórico do livro escrito por Mehring, A Lenda de Lessing: “Se encontro algo a censurar é que você me atribui mais mérito do que me cabe, mesmo se eu levar em conta o que possivelmente eu teria encontrado autonomamente — com o tempo —, mas que, porém, Marx, com o seu rápido golpe de vista (coup d’oeuil) e visão de conjunto mais ampla, muito mais depressa descobriu. Quando se teve a sorte de, durante quarenta anos, trabalhar juntamente com um homem como Marx, habitualmente, não se é tão reconhecido, durante a vida deste, quanto se crê que se merece; mas, uma vez morto o maior, facilmente o menor é superestimado — e parece-me ser agora, precisamente, o meu caso; a história porá finalmente tudo isto em ordem, mas até lá, felizmente, desaparecerei e não saberei mais nada de nada.” (Carlos Marx – Correspondencia – Federico Engels. Buenos Aires. Editora Cartago. 1973)
Se há pessoas neste mundo que merecem as maiores honras da classe operária são Karl Marx e Friedrich Engels pelo que realizaram para libertar os trabalhadores da exploração burguesa, desenvolver a teoria e o programa do movimento operário e para criar uma doutrina que “além de harmoniosa e completa; dá aos homens uma concepção coerente do mundo, inconciliável com toda a superstição, com toda a reação e com toda a defesa da opressão burguesa”. (V.I. Lênin. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. OE, tomo 2)
Conexão entre teoria e prática
Seria, então, essa posição de Marx e de Engels um excesso de modéstia ou podemos afirmar que o combate ao culto ao prestígio é um elemento essencial da ideologia comunista?
Como explicaram Marx e Engels, “A classe que dispõe dos meios de produção, também em virtude disso mesmo, dispõe dos meios de produção intelectual”. Assim, se a sociedade é capitalista, a moral dominante é a da burguesia, o que significa que os homens e mulheres, os jovens e até as crianças diariamente são submetidos à influência da ideologia disseminada por diversos meios, como igrejas, universidades e escolas, partidos políticos e grandes meios de comunicação (TV, rádio, jornais, cinema, internet). Pois bem, como sabemos, a ideologia da atual classe dominante – a burguesia – considera o individualismo o único caminho para o ser humano alcançar a felicidade e o êxito.
No auge do domínio do imperialismo norte-americano sobre a economia mundial (décadas de 1950, 1960 e 1970), foram criados inúmeros super-heróis, como Capitão América, Hulk, Batman, Homem de Ferro, Homem-Aranha, Thor, todos com poderes suficientes para salvar a humanidade de poderosos inimigos internos e externos. Na vida real, porém, milhares de greves operárias eram realizadas nos EUA, o povo negro lutava pelo direito de votar nas eleições, de estudar nas universidades públicas e entrar em restaurantes ou sentar nos ônibus, nada disso, entretanto, era possível saber lendo os gibis (revistas em quadrinhos) ou vendo filmes desses super-heróis. Apesar do enorme declínio da economia norte-americana, tal processo de mistificação das massas continuou e ainda continua em pleno progresso, como prova a criação de novos super-heróis (Quarteto Fantástico, Os Vingadores, Os Guardiães da Galáxia, X-Men, etc). Em comum, defendem a propriedade privada, justificam a guerra e apresentam as massas como expectadores da luta que se desenvolve no mundo.
Pode-se argumentar que se tratam de obras de ficção voltadas ao entretenimento e sem relação direta com a luta de classes. Mas são dezenas e dezenas de personagens e milhares de estórias e, em nenhuma delas, há sequer um questionamento sobre se o regime capitalista é responsável pela destruição do meio ambiente e pelas guerras no mundo, apesar do claro interesse de lucro por parte da indústria bélica e da busca desesperada dos monopólios para dominar mercados e fontes de matérias-primas. Uma tão grande coincidência só pode acontecer quando há um objetivo claro de alienar e ludibriar as massas.
Aliás, durante séculos, graças ao apoio da igreja, privilegiadas famílias se autoproclamaram escolhidas por Deus e tornarem-se donas de países inteiros, como, por exemplo, fizeram Eduardo III, na Inglaterra, Luís XIV, na França, Carlos V, na Espanha e Dom Pedro I, no Brasil. Até hoje, não faltam professores para defender que a História é resultado da ação de alguns poucos indivíduos iluminados.
No poema Perguntas de um operário que lê, do teatrólogo e comunista alemão Bertold Brecht, essa visão individualista da História é assim desmascarada:
“Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu?
Em que casas da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia que ficou pronta a muralha da China, para onde foram os seus pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo? Quem os ergueu?
O jovem Alexandre conquistou as Índias sozinho?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?
…
Em cada década um grande homem,
Quem pagava as despesas?”
Como deixa claro Brecht em seu poema, a concepção burguesa da história é uma farsa e inteiramente oposta a concepção cientifica defendida por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “A história de toda a sociedade até hoje é a história de lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo…”.
As eleições burguesas e o culto ao prestígio
Essa ideologia que exalta reis, generais e bilionários em detrimento do papel das massas trabalhadoras é muito nítida na chamada democracia burguesa, onde classes e forças políticas se organizam em partidos políticos para disputar as eleições. Nas disputas eleitorais, o eleitor vota preferencialmente numa personalidade. Após o término da campanha, a mensagem que fica é que a política é uma disputa entre candidatos e não entre partidos e classes sociais. Consequentemente, em grande medida, a campanha eleitoral nesse sistema, em vez de avançar a consciência política do povo no sentido de tornar-se uma força decisiva na transformação social, atua em sentido contrário, idolatrando algumas dezenas de candidatos.
Em nosso país, conhecemos várias lideranças populares que nasceram a partir das lutas operárias, mas, negando a própria história, comportam-se hoje como Narciso, que só vê beleza em si próprio. Esse fenômeno, que de maneira nenhuma é raro, é muito bem explicado por Engels ao criticar o Sr. Dühring, um homem numa busca desesperada por prestígio:
“Afirmamos que, até o dia de hoje, todas as teorias morais foram, em última instância, produtos da situação econômica das sociedades em que foram formuladas. E, como até os nossos dias a sociedade se desenvolveu sempre pelos antagonismos de classe; a moral foi também forçosamente uma moral de classe; …
Para se chegar à conquista de uma moral realmente humana, subtraída a todos os antagonismos de classes ou mesmo à sua recordação, teremos, antes, que alcançar um tipo de sociedade na qual não somente se tenham abolido os antagonismos das classes, mas também tenha sido esse antagonismo, além de abolido, esquecido e afastado das práticas da vida.” (F. Engels. Anti-Dühring. Paz e Terra. 1979)
Desse modo, a “força estranha” que se apodera da personalidade dos indivíduos no sentido de torná-los presunçosos e arrogantes, nada mais é, como explica Engels, do que o reflexo da ideologia individualista e egoísta da burguesia na sociedade capitalista, que, como se sabe, é baseada na propriedade privada dos meios de produção.
Uma nova ideologia exige uma nova sociedade
Para pôr fim ao domínio dessa ideologia na sociedade, é necessário, portanto, destruir o sistema capitalista e colocar em seu lugar um novo sistema econômico e político, o socialismo. Porém, “Só com a vanguarda é impossível vencer”. O que exige que “A tarefa mais importante da vanguarda consciente do movimento operário internacional, isto é, dos partidos, grupos e tendências comunistas, consiste em saber levar as amplas massas (hoje ainda na maior parte adormecidas, apáticas, rotineiras, inertes, não despertas, para esta nova posição capaz de assegurar a vitória da vanguarda na revolução …”. (V.I. Lênin. Obras Escolhidas, tomo 5. A doença Infantil do Esquerdismo no Comunismo)
Pois bem, se a vitória da revolução depende das massas (de que o “proletariado apareça e comece a erguer-se poderosamente um estado de espírito a favor das ações revolucionárias mais decididas”, V.I. Lênin. OC), é evidente que o principal na propaganda e agitação comunista deve ser conscientizar essas massas do seu papel revolucionário e da força da sua união e organização. Dessa maneira, os revolucionários devem opor ao individualismo a força do coletivo, isto é, fortalecer a direção coletiva no partido, no núcleo, na célula, no sindicato e propagandear que são os trabalhadores, e não os patrões, que produzem e constroem as riquezas.
Aliás, após a derrocada do velho regime, essa luta ideológica não diminui sua importância. continua sendo fundamental. De fato, quatro anos depois da conquista do poder pela classe operária na Rússia, V.I. Lênin, no Informe ao Congresso Nacional de Comitês de Instrução Política, em de outubro de 1921, apontou os três inimigos principais a serem combatidos pela revolução:
“Na minha opinião, hoje se coloca diante do homem, independente das funções que exerça e das tarefas que tenha definidas como instrutor político, se é comunista, e a maioria o são, deve enfrentar três inimigos principais que são os seguintes: o primeiro é a vaidade comunista, o segundo o analfabetismo e o terceiro, o suborno.” (V.I. Lênin. OC tomo 44. Editorial Progreso)
Virar as costas ou lutar contra as injustiças?
É claro que em qualquer trabalho sempre haverá aqueles e aquelas que vão se destacar e é digno e justo registrar essas contribuições, pois cada pessoa tem qualidades ou habilidades que não devem ser desconhecidas. Isso, entretanto, é muito diferente de se fazer culto ao prestígio ou de creditar o êxito de uma luta que é coletiva a uma só pessoa.
Sem dúvida, aqueles que trabalham unicamente pensando em obter méritos individuais, que têm a ideia fixa de serem sempre os mais aplaudidos, os mais citados, os mais elogiados, tornam-se, eles próprios, escravos da vaidade e passam a enxergar no companheiro ou na companheira que está ao seu lado um concorrente, e não um camarada. Agir e pensar dessa maneira é promover o culto ao prestígio, é abandonar, na prática, o marxismo-leninismo e seus princípios, é perder de vista que a revolução é uma obra coletiva, e não individual. Ademais, a maior satisfação de um ser humano nunca pode ser ele próprio, principalmente se falamos de um comunista, como explica M.I Kalinin em seu artigo O Estudo e a Vida, de 30 de maio de 1926:
“Pois, que melhor recompensa para o homem do que a convicção de haver contribuído com algo para a sociedade! Não existe recompensa melhor! Por mais belas que sejam as ilusões que tenhais a satisfação maior que podeis receber é a de saber que sois úteis. Essa convicção satisfaz plenamente o homem.”
Em suma, embora seja importante, em ocasiões em que se faz uma avaliação e se debate o cumprimento das tarefas definidas, destacar o esforço de um ou de uma camarada que cumpriu uma importante tarefa, deve-se procurar sempre aplaudir o esforço que todos realizaram para que a luta avançasse e fosse vitoriosa.
Por fim, lembremos uma outra carta de Karl Marx escrita a S. Mayer³, em 30 de abril de 1867, onde ele resume o pensamento que cada um de nós marxistas-leninistas devemos ter no dia a dia de nossa militância: “Se uma pessoa quiser comportar-se como um animal, pode, evidentemente, virar as costas aos males da humanidade e apenas preocupar-se com a sua própria pele.”
¹Wilhelm Blos (1849-1927), comunista alemão, jornalista e historiador e chefe da redação do jornal Volksstaet.
² Franz Mehring (1846-1919), jornalista e historiador comunista, autor de diversas obras marxistas, entre elas Karl Marx, história de sua vida e História da Alemanha; e publicou várias obras póstumas de Marx e Engels. Membro do marxismo revolucionário alemão declarou guerra ao revisionismo e, ao lado de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht criou a Liga Spartacus, em 1916, em oposição à política de conciliação de classe do Partido Social Democrata Alemão.
³S. Meyer (1840-1872), socialista alemão e norte-americano, membro da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e do movimento dos trabalhadores alemães de Nova York.
Matéria publicada na edição nº284 do Jornal A Verdade.