Os artistas de rua enriquecem a cidade nos espaços onde a classe trabalhadora transita durante sua correria. Entretanto, para a burguesia, nossos artistas são vistos como um problema, tanto porque não estão na linha de produção ou no setor de serviços gerando lucro quanto por muitas vezes despertarem o pensamento crítico da população que os assiste.
Caio Mago | Salvador
CULTURA – O grupo artístico Guias Cegos, conhecido pelas apresentações no transporte público de Salvador, foi alvo de mais um absurdo cometido pelo grupo CCR na Bahia no dia 24 de dezembro de 2023. Durante uma apresentação no metrô de Salvador e Lauro de Freitas, administrado pela companhia, os artistas foram acusados de causar transtorno dentro do vagão, sendo acompanhados por um grupo de 12 agentes de segurança mobilizados ao redor deles.
Em nenhum momento o público se manifestou contra a intervenção cultural apresentada pela banda e os artistas evitaram qualquer tipo de tensão. Ao perceber que os passageiros estavam gostando da apresentação e não permitiriam truculência contra os poetas, a CCR acionou a Polícia Militar. Após isso, o grupo preferiu se retirar para evitar maiores danos físicos, jurídicos e psicológicos.
Um mês antes, os artistas haviam sofrido agressões físicas dos seguranças da empresa que os empurraram para fora do vagão, mesmo com uma criança de dois anos no colo de uma das integrantes. A agressão contou com a ajuda de um passageiro que aproveitou o tumulto para assediar sexualmente a integrante com o filho no colo e recebeu agradecimentos de uma das agentes.
O trabalho dos Guias Cegos pode ser encontrado com facilidade na internet e nas plataformas digitais. Confira o último lançamento:
Os entraves entre a classe trabalhadora e o acesso à cultura
Quando Ministro da Cultura, Gilberto Gil disse em entrevista:
“É preciso acabar com essa história de achar que cultura é uma coisa extraordinária. Cultura é ordinária. Cultura é igual a feijão com arroz, é necessidade básica. Tem que estar na mesa, tem que estar na cesta básica de todo mundo. (…)”
Assim como o feijão, o arroz e o restante da cesta básica, a cultura é mais um elemento fundamental para a vida humana negada à população pelo sistema capitalista. Para as elites financeiras, a arte que tem valor é aquela exibida apenas nas galerias e grandes teatros, salas privadas de cinema e eventos de luxo, sendo uma experiência restrita para aqueles que detém o poder aquisitivo e político dentro da sociedade, enquanto a cultura popular só serve quando pode ser apropriada e descaracterizada para gerar lucro.
Há também uma questão racista, principalmente na música: estilos musicais percussivos, característicos da afrodiáspora e da música latino-americana e caribenha, são vistos como inferiores à música “erudita” europeia, e muitas vezes até à música pop, que se apropria de elementos trazidos por diversas manifestações culturais do terceiro mundo, os tira de contexto e os apresenta como criação de uma pessoa ou um grupo de pessoas brancas.
Um grande exemplo disso é o Axé Music, gênero que surgiu da apropriação do axé, samba-reggae e outras manifestações político-culturais com fortes influências da cultura africana e do Candomblé para o seu esvaziamento e comercialização. Hoje grupos como Ilê Ayê e Olodum são escanteados no Carnaval de Salvador, apesar de serem referências fundamentais para o trabalho de artistas com maior visibilidade, se apresentando em horários de menor destaque e com menos estrutura. Entretanto, projetos sociais mantém a cultura viva, fazendo as veias do Centro Histórico pulsarem ao som dos tambores no Pelourinho.
A arte popular cumpre também um papel político muito importante no processo revolucionário. Assim como os brigadistas do Jornal A Verdade, os artistas de rua levam a verdade ao nosso povo, junto às suas dificuldades, problemas e histórias de vida. Os Guias Cegos, por exemplo, abordam em suas letras temas como a hostilidade da arquitetura da cidade de Salvador, a tensão racial e suas relações de classe e uma série de outras críticas à estrutura do sistema capitalista e suas contradições.
Levar esse debate à classe trabalhadora, que pouco tempo possui para assistir a uma apresentação depois de oito horas de trabalho, é jogar contra o sistema e apresentar às pessoas um pouco daquilo que as faz mais humanas. O consumo de arte, a leitura, o estudo, a socialização são coisas que rompem com o estilo de vida que a burguesia impõe sobre a classe trabalhadora, que deveria servir apenas como mão-de-obra, despida de sua moral e sua humanidade para a manutenção da exploração e de seus lucros.
A organização popular da cultura
Porém, não só no trabalho ambulante a arte popular encontra dificuldade. Até quando esses artistas conseguem se organizar coletivamente para montar um evento, seja ele uma batalha de rimas, uma apresentação mensal em espaço público, uma festa aberta, se deparam com um burocratismo imenso para regularizá-lo, narrado pelo rapper carioca Sant na música “Olhares”:
“Nossa verdade nos salvará, e é isso
Mas na rua precisa alvará, o que é isso?
Delimitaram nossas terras, guerras e guerras
Eu sei o que isso causará (…)”
Um exemplo claro desse conflito é a repressão às batalhas de rimas, como a intervenção da PM do Rio Grande do Norte à Batalha Clandestina. Nesse evento realizado na Zona Norte de Natal um artista foi agredido e diversos outros foram ameaçados. Até quando são gratuitas, as oportunidades de acessar a cultura são vetadas pelo poder público em defesa da vontade e do mau gosto da burguesia.
Para não só reverter esse quadro de dominação e cerceamento dos espaços de cultura, como também conquistarmos o direito à vida, à liberdade e à dignidade, é necessário que nos organizemos. Não há possibilidade de emancipação do nosso povo enquanto vivermos em uma sociedade onde os ricos enriquecem sentados nas costas dos trabalhadores, que derramam sangue, suor e lágrimas pelo mínimo para sua sobrevivência. Só a partir de uma sociedade verdadeiramente livre da opressão e da exploração poderemos desfrutar de uma arte que nos engrandeça e nos represente de forma legítima.