Para a emancipação das pessoas trans, é fundamental destruir o sistema atual que nos oprime, é preciso extirpar a propriedade privada, alicerce da construção binária de gênero e do modo de produção capitalista
Felipe Fly | São Paulo
SOCIEDADE – A comunidade trans abriga diversas identidades de gênero, como travestis, mulheres trans, transmasculines, pessoas não binárias, intersexo entre outras. O termo “trans” serve enquanto palavra guarda chuva por nos unir no que nos é intrinsecamente comum: identidades de gênero que provocam o desmantelamento da condição cisgênera que começa a ser imposta ainda em gestação, e segue sendo reforçada após o nascimento. Originalmente essa condicionante cis servia para organizar e legitimar a passagem da herança e da propriedade e garantir o acúmulo do capital. Posteriormente, se torna mantenedora da divisão social de trabalho, que no sistema capitalista necessita que a maioria padeça para que poucos prosperem. Porém, nossa união enquanto comunidade e a construção de nossas identidades não se resumem a essa condição alheia que nos foi dada, mas se faz historicamente na rua, na cultura ballroom, nos periódicos LGBTIA+, nas casas de acolhida, nos coletivos, entre outros.
A maioria de nós se encontra em situações de vulnerabilidade social caracterizada pela ausência de emprego formal e qualificado, pouco ou nenhum atendimento a saúde (especializada ou não), alta taxa de evasão escolar e altos índices de mortalidade por agressão ou suicídio. No quesito da renda, o mapeamento realizado pelo CEDEC revela que mais de 50% da população trans recebe entre 0 e 1 salário mínimo, e se considerarmos até 2SM essa porcentagem sobe para 90%, ou seja, até quando estamos no emprego formal estamos majoritariamente nos postos de trabalho de baixa remuneração. Em nossa evidente maioria, ocupamos o lugar de classe trabalhadora dentro das relações de produção e, portanto, nossa única possibilidade de real emancipação é através da construção de uma sociedade sem classes, através da qual será possível garantir a dignidade da vida, bem como a desconstrução do conceito social de gênero que serve hoje de amparo aos mecanismos exploratorios do capital, hegemônicamente cis.
Mapeamento de dados em São Paulo
Ainda assim, vale destacar, a situação das pessoas trans é também bastante heterogênea, tal qual a gama de identidades que compõem esse termo. Para melhor avaliar essas distinções, são necessários dados que nos situe enquanto membros ativos da sociedade: moradia, emprego, saúde e não apenas as mortes, como o grosso das estatísticas das quais fazemos parte. Para tanto, foi realizado entre 2019 e 2021, o Primeiro Mapeamento de Pessoas Trans no Município de São Paulo pelo CEDEC (Centro de Estudos em Cultura Contemporânea) em parceria com a SMDHC (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania) e demais instituições como a Defensoria Pública e membros da sociedade civil, que mapeou mais de 1700 pessoas trans e as dividiu em 4 identidades de gênero para realizar a entrevista: travesti, mulher trans, homem trans e não-bináries. O mapeamento não só reforça o quão precarizada é a condição de vida das pessoas trans no município de São Paulo, mas destaca a condição profundamente mais agravada para as mulheres trans e sobretudo para as travestis. Um exemplo disso é a educação: a taxa de conclusão de ensino médio em São Paulo pelo IBGE (2020) é de 86,5%. Para homens trans, essa porcentagem cai para 64% e para travestis 39%. A taxa de conclusão do ensino superior para homens trans é de 18% ao passo que para as travestis é de apenas 7%. Ou seja, o já catastrófico cenário de desmonte da educação em São Paulo é ainda pior para a comunidade trans, e terrivelmente mais crítico para as travestis.
É preciso se organizar
A organização de pessoas trans em movimentos e partidos é baixa, de acordo com o mesmo mapeamento, 77% das pessoas trans não compõem qualquer tipo de organização política ou social voltada para a sua comunidade. Como a maioria da classe trabalhadora, muitas pessoas trans apresentam como parte da dificuldade de organização o fator tempo, dado que 50% de nós realiza mais de uma atividade para garantir nossa renda e ainda assim, mal chegamos a um salário mínimo, mas outro fator relevante é a própria transfobia dentro dos espaços de organização política, que por vezes carecem de debate e acúmulo sobre nossas vivências, demandas e acabam por reproduzir atitudes e comentários transfóbicos, nos evadindo da possibilidade de nos organizar.
Frente a inevitável necessidade de construir uma nova sociedade, justa, igualitária em que se possa extinguir a propriedade privada e instaurar um modo de produção na qual prevaleça o bem comum, é preciso fortalecer que a comunidade trans consiga ultrapassar suas demandas enquanto comunidade e desenvolva enquanto uma busca comum enquanto classe em si e para si, bem como realizar a autocrítica prática das organizações para a legitimação das demandas específicas da comunidade trans, e a valorização do seu histórico de luta, no qual é notória a contribuição destacada das travestis, parcela da comunidade que esteve à frente da organização pela conquista da maior parte dos direitos que temos hoje como o atendimento especializado no SUS, PREP nos ambulatórios, retificação do nome social sem o CID e, a nível mundial, da organização e engajamento político da comunidade LGBTIA+ através de manifestações e passeatas massivas como da Revolta de Stonewall (Estados Unidos) e da campanha Travesti e Respeito (Brasil).
Para além da disputa diária e pessoal que realizamos enquanto corpos políticos dissidentes e marginais, sejamos a disputa coletiva. Por muito tempo fomos colocades à margem das organizações políticas e nossa luta pela liberdade se viu forçada a ser construída no limite da sobrevivência diária. Que hoje possamos nos dedicar também coletivamente à conquista de nossa liberdade futura.