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sábado, 4 de maio de 2024

O carnaval é a festa do povo, e o povo clama por um mundo mais justo

Denunciando injustiças sociais de forma provocativa e alegre, as escolas de samba seguem fortemente o conselho de que “é preciso endurecer sem jamais perder a ternura”, do comandante Che Guevara. No entanto, a inserção de grandes patrocinadores no mundo carnavalesco coloca em questão a independência das escolas.

Isadora Miranda | Florianópolis (SC)


CULTURA – Antes mesmo do carnaval assumir a forma de festa que conhecemos, as manifestações que levaram à sua formação – como o samba, o entrudo e as casas de macumba – foram alvo de censura e perseguição em diferentes momentos históricos. O motivo era claro: essas atividades eram praticadas, em maioria, por pessoas recém libertas do regime de escravidão. No início do século XX, a elite carioca destruiu os cortiços, e as populações socialmente marginalizadas que neles residiam, foram empurradas para os morros da capital fluminense, se tornando marginais também em relação ao centro da cidade. Os anos passaram, e a partir da resistência, criatividade e, principalmente, valorização da alegria dessas pessoas para com os seus, surgiram os primeiros blocos de carnaval, que logo se tornaram escolas de samba, e desfilam no que hoje é conhecido como o maior espetáculo da terra.

Que papel as escolas de samba cumprem na atualidade?

As escolas de samba concentram em seus barracões o que possivelmente só existe nesses espaços: uma mistura de pesquisa, festa e muito trabalho. Na maioria dos casos, há apenas um mês de “férias” para os segmentos da escola depois do grande desfile de carnaval. Após o breve descanso, a escrita do novo enredo já começa, seguida das oficinas, concurso de samba-enredo, criação e produção de fantasias, ensaios recorrentes, montagem de alegorias, etc. Além disso, as atividades de arrecadação de finanças ocorrem ao longo de todo o ano. Tudo isso só é possível graças a um trabalho voluntário constante, motivado pelo amor à escola e sua história, e um sentimento de pertencimento único.

O conhecimento é transmitido de diferentes formas, por e para todos os segmentos da escola. Os enredos (ou seja, a história a ser contada no dia do desfile) são frutos de muita pesquisa, feita não só a partir das fontes de conhecimento tradicionais da academia, mas daqueles transmitidos pela oralidade, um elemento vivo na cultura carnavalesca. Durante o período de preparação para o desfile, os temas do enredo são estudados pelo pavilhão, sendo o aprendizado coletivo um hábito dentro das escolas. Frequentemente, personalidades do carnaval local são homenageadas nos enredos, assim como a cultura das próprias escolas. Há uma grande preocupação em reverenciar o legado daqueles que lutaram pelos povos oprimidos.

Dentro das escolas, há participação e valorização de pessoas de todas as idades. As crianças comumente participam dos projetos sociais das escolas, que formam jovens para os segmentos internos da escola, e também para a sua vida pessoal – caso, por exemplo, de pessoas que após anos tocando na bateria da escola, conseguem empregos na área. Já a Velha Guarda é composta de pessoas idosas, com muita sabedoria e cuja devoção à escola é fonte de inspiração para todos os novos integrantes. São as mulheres as protagonistas, e dirigem todo o pavilhão. Diversidades de gênero e sexualidade são normalmente recebidas com alegria pelos participantes, que almejam uma escola diversa. Acima de tudo, o reconhecimento do carnaval enquanto cultura popular, de origem preta e pobre, é amplamente difundido entre a escola, e reforçado nos desfiles. 

Com esses elementos, é possível perceber que as escolas de samba são organismos completos, vivos e extremamente potentes. A população dos bairros em torno das escolas criam um senso de comunidade ímpar, que acaba refletindo na maior proximidade e companheirismo entre essas pessoas. Em diversos depoimentos, foliões experientes contam como a cultura do carnaval ensina pessoas não somente sobre temas específicos de enredos, mas também – e principalmente – faz com que as comunidades se entendam melhor no que diz a respeito de suas identidades. No dia do desfile, as escolas apresentam um grande manifesto, mostrando suas revoltas e desejos, que são invisibilizados durante um ano inteiro, mas que conseguem ser vistos e ouvidos durante a uma hora e quinze que desfilam na passarela.

Sobre o que falam os enredos?

Não há limites para a criatividade do carnavalesco ao decidir que história vai ser contada pela escola, e o ano de 2024 promete desfiles incríveis em muitos sambódromos do Brasil. Citando algumas escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro, a Salgueiro fará um protesto contra o genocídio Yanomami, denunciando as mazelas da colonização, do garimpo ilegal, e, principalmente, do desmatamento desenfreado da floresta amazônica. A escola Paraíso do Tuiuti vai fazer uma homenagem ao líder da revolta da chibata João Candido, exaltando seu legado na luta por direitos, e levantando a bandeira “enquanto houver quem defenda ditaduras haverá uma chibata empunhada, afinal não faz muito tempo…”

O Grupo Especial de São Paulo também trará temas muito relevantes para a sociedade brasileira em seus desfiles. Falando de agremiações carnavalescas de times de futebol, a Independente Tricolor (escola do São Paulo Futebol Clube) irá homenagear as Agojis, um exército de mulheres africanas do reino de Daomé que batalharam contra a escravidão, enquanto a Mancha Verde (escola da Sociedade Esportiva Palmeiras) falará sobre a agricultura familiar e o combate à fome. Um destaque desse ano é o enredo “Capítulo 4, Versículo 3 – da rua e do povo, o hip hop: um manifesto paulistano”, da escola Vai-Vai, que apresentará ao Sambódromo de Anhembi expressões como o rap, grafitti, break, MCs e DJs, defendendo e desmistificando uma cultura marginalizada.

Neste ano, outros enredos provocativos desfilarão nas passarelas brasileiras, mas vale relembrar desfiles passados marcantes, também. Em 2011, em Florianópolis, a União da Ilha da Magia apresentou o enredo “Cuba sim! Em nome da verdade”, um desfile que enalteceu a revolução cubana e seus efeitos, e contou com a presença de Aleida Guevara, filha do comandante Che Guevara. Em entrevista à Globo, Aleida afirmou que a principal mensagem do desfile foi a amizade entre o povo cubano e brasileiro, que ainda que não falem o mesmo idioma, compartilham das mesmas necessidades enquanto seres humanos. O desfile foi alvo de ataques da mídia burguesa, o que gerou ainda mais repercussão para o enredo. A escola foi campeã do grupo especial naquele ano. 

Outro exemplo é o polêmico desfile da agremiação Beija-Flor de Nilópolis em 1989, de nome “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, quando o então carnavalesco Joãosinho Trinta decidiu fazer um enredo sobre o lixo, pobreza e desigualdade numa época em que o carnaval era marcado pelo luxo. Buscando fazer uma crítica social sobre as contradições por trás da luxúria da elite, João utilizou materiais que seriam “lixo” para decorar os carros, chamou pessoas em situação de rua para desfilar e pensou no abre-alas mais marcante da história do carnaval: uma grande favela, de onde sai Jesus, que estaria representado pela figura de um mendigo. A Igreja Católica proibiu a exibição da alegoria, mas o carnavalesco não se intimidou, e cobriu a alegoria com um saco plástico preto, onde estava pendurada uma faixa escrito “mesmo proibido, olhai por nós!”. 

Beija-Flor de Nilópolis desfila com o abre-alas “Cristo mendigo”, censurado pela Igreja Católica, coberto por um saco plástico e segurando a faixa com o escrito “mesmo proibido, olhai por nós!”. Foto: Luiz Caversan/Folhapress

Quais os desafios de fazer um carnaval independente?

Para corresponder ao alto nível de exigência de carros, fantasias e adornos, as escolas de samba precisam de dinheiro. Nos primeiros desfiles a luxúria não era o principal, mas a partir da transmissão televisionada do evento, seguida de grandes investimentos principalmente de bicheiros a partir de 1980, os grandes gastos se tornaram uma característica do carnaval. Para 2024 estima-se que cada escola do Grupo Especial do carnaval do Rio de Janeiro tenha um orçamento de dez milhões de reais (R$10.000.000,00), uma quantia que dificilmente se consegue de forma independente, 

Como solução para essa demanda das escolas por recursos, grandes empresas oferecem patrocínio em troca de um enredo que fale da corporação. Essa prática é comum, e ocorre com muitas escolas todos os anos. Empresas como a Vale, Nestlé, Petrobras, e muitas outras já foram patrocinadoras, além dos enredos que também ganham incentivo por se tratar de alguma cidade, estado ou país. Em 2012, a Porto da Pedra pagou caro pelo patrocínio que recebeu da Danone, e seu desfile sobre leite e derivados causou o rebaixamento da escola para o grupo de acesso, demonstrando que nem sempre o dinheiro recebido corresponde a um benefício à escola.

Existe também o tipo de investimento que não visa a propaganda de uma empresa ou produto em específico, mas sim um prestígio social. Os bicheiros exercem esse papel há décadas no Rio de Janeiro, tendo o hábito de “adotar” uma escola de samba e investir nela ao longo de todo o ano, promovendo além do desfile, ações de caridade (como doação de brinquedos, atendimento médico, financiamento de festas, etc). Agentes do governo municipal e estadual também possuem grande interesse em investir no carnaval quando a festa gera receita para o Estado, através da vinda de turistas, patrocínios e aumento de vendas. 

Em todos os casos, o retorno financeiro e social para os investidores é muito maior que a verba aplicada por eles nas escolas, sendo a prática do patrocínio um exemplo de exploração das escolas de samba. A criação da demanda por altas fortunas no carnaval foi fomentada pela própria burguesia, que simultaneamente se colocou como única alternativa para custear a festa, gerando ela a “a doença e o remédio” do carnaval.  

Deve-se lembrar que as escolas são múltiplas, diversas e compreendem a questão do patrocínio de diferentes formas. Possuem o enorme desafio de se manter independentes de investimento privado, ao mesmo tempo em que se encontram desamparadas pelo poder público.

Uma reflexão política sobre o carnaval

Em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva em 1990, o carnavalesco Joãosinho Trinta explicou a força existente nas escolas de samba quando falou: “Se artistas, intelectuais e governantes se voltassem um pouco para o trabalho das escolas de samba, iriam encontrar não uma exposição, mas o povo. Esse povo tão esquecido, essa energia poderosa, que quando aparecer alguém que saiba levantar os ânimos desse povo, aí sim vai acontecer a grande nação. Um povo que faz escola de samba, o maior espetáculo da terra, esse povo pode erguer uma nação.”

O carnaval é um momento de transgressão da ordem. Mesmo com as repressões e sabotagens do Estado e instituições por ele dominadas acontecendo sobre a festa a todo momento, as escolas de samba não se amedrontam, e mostram a força do povo unido. Os ataques a essa manifestação artística evidenciam que a cultura popular incomoda a burguesia, que se sente atingida pelas denúncias de injustiça exploração. Ademais, o  carnaval tem a peculiaridade de apresentar a revolta de forma alegre, mostrando uma população que é convicta de seus ideais e carrega um sorriso no rosto. Por mais penosa que seja a mensagem do enredo, o gozo pela vida e pelo momento presente é o que prepondera na avenida. Assim, a felicidade é o combustível do carnaval, e também o seu produto.

Também, é preciso destacar também a importância que o carnaval tem para quem faz ele acontecer. O carnaval feito pelas escolas de samba é a manifestação de uma cultura em que o povo se vê retratado em seu trabalho, e se orgulha de si enquanto classe trabalhadora. Ainda que a burguesia tente extorquir o trabalho realizado nos barracões das escolas e usá-lo para publicidade ou obtenção de prestígio, a resistência popular prevalece. Isso porque a maior parte das escolas de samba continuam exercendo a tradição da ancestralidade e valorizando sua resistência política, religiosa e cultural. Enquanto o carnaval seguir com esses princípios, ele será uma festa feita pelo povo, para o povo, e irá retratar o próprio povo. A festa continuará, portanto, demonstrando o potencial da classe trabalhadora em se sobrepor à elite quando reconhece a grandiosidade do seu trabalho.

Assim, é possível encontrar nas escolas de samba um verdadeiro aquilombamento do saber, em que através da comunhão se “assume uma posição de resistência contra-hegemônica”¹. A união entre pessoas historicamente oprimidas, repletas de insatisfações e angústias, nos motiva a olhar ao passado, presente, e futuro e, acima de tudo, realizar sonhos. Sonhos esses que jamais possuem aspirações individuais, e são os mesmos que nossos ancestrais sonharam.

“Os ideias da liberdade derrotam a ditadura”, da União da Ilha da Magia, no desfile de 2011. Na dianteira do “tanque”, está Aleida Guevara, acompanhada de uma pessoa cuja fantasia faz referência a Fidel Castro. Foto: Reprodução/Solidários a Cuba

¹ DE SOUZA SOUTO, Stéfane Silva. Aquilombar-se: insurgências negras na gestão cultural contemporânea. Metamorfose, v. 4, n. 4, 2020.

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  1. “aquilombamento do saber”, vou usar seu termo quando eu precisar elucidar os ataques contra a maior festa popular do planeta, obrigado pelo texto!

  2. Genial! Fiquei encantado pela matéria, ainda mais com o exemplo de desfile em Floripa que honra a revolução cubana. Já percebia o tamanho da importância que o carnaval tem para nosso povo, mas as reflexões da matéria sobre dos enredos/protestos contra as injustiças ao mesmo tempo que mantém a alegria é de deixar qualquer um orgulhoso da maior festa popular desse planeta. Parabéns Isadora!

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