Há dez anos, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou 29 recomendações, que deveriam se constituir como políticas públicas para assegurar o direito por memória e verdade em relação às vítimas da Ditadura. O atual governo do PT, no entanto, mesmo após um ano e três meses de ter tomado posse, ainda não reorganizou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 e extinta por Bolsonaro alguns dias antes de Lula tomar posse.
Redação
BRASIL – No dia 1º de abril de 1964, generais fascistas, apoiados por uma esquadra de navios de guerra estadunidenses, destituíram o presidente João Goulart e tomaram o poder. Após isso, impuseram ao país 21 anos de torturas, assassinatos, genocídio e ataque aos direitos dos trabalhadores.
Ninguém podia votar para presidente, governador ou prefeito. Partidos políticos foram fechados, jornais censurados, trabalhadores demitidos ou presos simplesmente por fazerem greve por melhores salários. Comunistas, revolucionários e patriotas foram presos, torturados e assassinados.
Ainda assim, com tantos crimes, até hoje o Estado brasileiro não adotou nenhuma atitude concreta para punir os criminosos fascistas, fossem militares ou civis.
Há dez anos, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou 29 recomendações, que deveriam se constituir como políticas públicas para assegurar o direito por memória e verdade em relação às vítimas da Ditadura. O atual governo do PT, no entanto, mesmo após um ano e três meses de ter tomado posse, ainda não reorganizou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 e extinta por Bolsonaro alguns dias antes de Lula tomar posse.
Pior foi a postura do presidente Lula em dois momentos recentes. Primeiro, em entrevista à RedeTV, ele afirmou que “não podemos remoer o passado” e que está preocupado com o futuro do Brasil, lavando as mãos em relação à impunidade dos crimes da Ditadura. Depois, ele ordenou que os órgãos do Governo Federal se abstenham de realizar qualquer ato que critique a Ditadura no contexto dos 60 anos do Golpe de 1964. Esta medida foi combinada com o Alto Comando das Forças Armadas e o ministro da Defesa, o reacionário José Múcio, amigo de Bolsonaro.
Ora, o povo brasileiro foi submetido a 21 anos de tirania, que inspirou e orientou o governo do fascista Bolsonaro por quatro anos e que levou à tentativa de golpe de 08 de janeiro de 2023. Fica, então, a pergunta: por que tanta covardia e conciliação com os generais fascistas?
Revolta entre vítimas da Ditadura e familiares
A Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia – que reúne dezenas de entidades e militantes dos direitos humanos – lançou uma nota sobre a declaração de Lula na TV: “Repudiar veementemente o golpe é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras. (…) Falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade, que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro”, diz nota divulgada pela entidade.
Leo Alves, que é neto de um desaparecido político – Mário Alves de Souza Vieira, que foi dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), afirmou que os parentes insistirão com o Governo pela volta da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e que recebeu com profunda indignação a declaração. “Estamos organizados em dezenas de entidades de direitos humanos para seguir nessa luta. (…) Não podemos negociar com direitos conquistados. Lula está diminuindo a relevância histórica do que representou o Golpe de 64, na véspera de completar 60 anos”.
Em entrevista ao ICL Notícias, Suzana Lisboa, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e vítima da Ditadura, chamou de “vergonhosa” a posição do governo. “Queremos justiça quanto àqueles que torturaram, que vazaram os olhos, que arrancaram cabeças, que esconderam os corpos e que nos torturam até hoje com essa dúvida. Eu sou uma das pouquíssimas que teve a sorte de achar o seu desaparecido, eu tenho um túmulo para prantear. Centenas de familiares não têm. Ele (Lula) não sabe o que é isso. Eu estou engasgada com essa decisão”.
Para Paulo César Ribeiro, membro do Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação – RJ e da TV Resistência Contemporânea, “o governo atual é uma frente ampla, amplíssima, que tem um ministro da Defesa que é representante das direções das Forças Armadas, e não um representante das forças progressistas e democráticas frente às Forças Armadas”. E afirma: “Durante os Governos Lula e Dilma, conseguimos alguns avanços nas lutas por Memória, Verdade, Justiça e Reparação, mas ainda restam muitas reivindicações não atendidas: abertura dos arquivos da ditadura, apuração dos crimes cometidos, com responsabilização e punição dos culpados pelas graves violações dos Direitos Humanos cometidos durante a ditadura”. Ele lembra ainda que o Poder Judiciário e o Parlamento, até hoje, também empurram para debaixo do tapete a pauta de justiça e reparação às vítimas dos crimes da Ditadura.
“Demorar ou não assumir compromisso de reabrir a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, por exemplo, é um sintoma de que essa frente ampla exige do presidente Lula muita conciliação. No Parlamento, no Executivo e no Judiciário, assim como na mídia das grandes empresas, as forças conservadoras, reacionárias e mesmo de extrema-direita conseguem ameaçar constantemente o governo. O STF não fez a reinterpretação da Lei da Anistia para considerar que tortura e desaparecimento forçado são crimes inafiançáveis e imprescritíveis”, afirma Paulo César.
Mobilização popular
Apesar da decisão do Governo Lula em não realizar atos de repúdio ao Golpe de 1964, movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e sindicatos mantiveram a convocação de manifestações em repúdio à Ditadura Militar Fascista. São mobilizações como estas a única alternativa que dará condições para que a pauta de Memória, Verdade, Justiça e Reparação seja, de fato, efetivada no país.
O maior exemplo é a própria revogação da Lei de Segurança Nacional. O fim desta lei, que era uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, só foi cumprida enquanto o país vivia mobilizações que levavam milhões de pessoas às ruas contra o fascista Bolsonaro, em 2021.
Essa avaliação também é reforçada por Paulo Cesar Ribeiro. Para ele, é necessário que os movimentos populares e organizações de esquerda retomem as mobilizações sobre a pauta. Ele relembra ainda que o país não passou por uma Justiça de Transição, como na Argentina, onde os militares foram presos e condenados pelos crimes cometidos na ditadura argentina.
“Colocaria uma questão: ‘Como se conseguir uma Justiça de Transição’? Mudando a correlação de forças. As forças populares precisam ir além, muito além das lutas institucionais que os partidos com representação parlamentar fazem atualmente. As eleições são importantes, mas precisamos de um movimento popular mais forte nos campos e nas cidades. Precisamos de um poder popular que, além de eleger representantes para os espaços de poder institucionais, consigam, de fato, conquistar a hegemonia”, afirma Paulo César.
A luta por justiça, pela abertura dos arquivos da Ditadura, mais que uma pauta sobre o passado, é um enfrentamento do presente e do futuro. O fato de o país não ter acertado contas com o passado ditatorial é um dos fatores que dá condições a fascistas como Bolsonaro surgirem e tentarem novos golpes militares no país.
Matéria publicada na edição nº 288 do Jornal A Verdade.