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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Especulação imobiliária poderá jogar Praia do Buracão às sombras

Além do encarecimento dos imóveis, do aumento dos congestionamentos pelo adensamento populacional e da perda da identidade cultural do bairro, esse processo ganhou um desdobramento ainda mais agudo, a partir do projeto imobiliário previsto para ser erguido na Praia do Buracão, uma das praias mais frequentadas da orla do Rio Vermelho.

Gustavo Rebelo e Gabriel Reis


Há décadas, o desenvolvimento urbano da cidade de Salvador foi capturado pelos interesses das incorporadoras, das construtoras e do capital imobiliário. Os sintomas desse quadro são perceptíveis na paisagem da cidade. Muito rapidamente as residuais áreas verdes foram devastadas para dar espaço a empreendimentos privados, como condomínios ou supermercados. Imóveis históricos são demolidos e substituídos por construções modernas. De maneira feroz, bairros inteiros são verticalizados, alterando radicalmente a lógica social a qual os seus moradores e visitantes estão habituados.

Essa tendência ganhou um novo impulso a partir da aprovação do novo PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) e da LOUOS (Lei de Ordenamento do Uso do Solo) em 2016, quando Salvador era governada pelo oligarca ACM Neto, padrinho político do atual prefeito Bruno Reis (União Brasil). Com esta nova legislação, foi permitida a construção de espigões na orla marítima da cidade de até 25 andares, além da devastação de áreas verdes, particularmente no bairro de Patamares.

Uma das regiões mais sensíveis a essas transformações é o bairro do Rio Vermelho. Famoso por ser palco da celebração ao Dia de Iemanjá, pela atividade da pesca artesanal e por sua efervescência cultural, suas tradicionais residências de um a dois pavimentos estão sendo paulatinamente compradas e demolidas, dando lugar a condomínios verticais de alto padrão. Além do encarecimento dos imóveis, do aumento dos congestionamentos pelo adensamento populacional e da perda da identidade cultural do bairro, esse processo ganhou um desdobramento ainda mais agudo, a partir do projeto imobiliário previsto para ser erguido na Praia do Buracão, uma das praias mais frequentadas da orla do Rio Vermelho.

O empreendimento residencial de luxo é tocado pela antiga Odebrecht (atual Novonor) e prevê a construção de duas torres de 15 a 16 pavimentos, a serem erguidas a poucos metros da faixa de areia. Com isso, se tornou concreto o risco de que o sombreamento gerado pelas construções afete profunda e permanentemente o espaço de lazer e sociabilidade dos banhistas.

O Jornal A Verdade entrevistou o arquiteto e urbanista Daniel Passos, representante do Movimento S.O.S Buracão, que vem levando à frente a luta pela preservação da praia e pelo banimento da construção das torres.

 

A VerdadeO que é o projeto imobiliário que está previsto para acontecer na Praia do Buracão? Quais suas possíveis consequências para os frequentadores da praia?

Daniel Passos – Não tenho como responder essa pergunta porque não sabemos como é o projeto. Até onde a gente sabe, a notícia veio através de matérias de jornais que demonstraram uma parcialidade forte com o assunto, e o que a gente sabe são palavras do CEO da OR (incorporadora da Novonor) e ele comenta que o projeto são duas torres, uma de 15 e outra de 16 andares, somando 47 unidades habitacionais apenas. Além disso, ele propõe a utilização de um recurso chamado CAM, que prevê a requalificação de uma área  que não sabemos qual, que prevê o uso de 4 milhões de reais para fazer essas obras.

O que a gente sabe é que os prédios vão sobrepor um lugar onde existem três casas, onde tem a junção de duas residências e a incorporação de uma outra. No caso uma das casas, a nº 218, é interessante porque foi comprada por 1,5 milhão de reais em 2016, uma casa uniresidencial, e foi vendida cinco anos depois para a Odebrecht por 5 milhões de reais. Uma casa que não cumpriu sua função social ao longo desses cinco anos. 

O comprador de uma das casas disse que tinha interesse em construir a sua própria casa. Cinco anos se passaram e a notícia que a gente teve é que ele vendeu para a Odebrecht para subir um prédio de 15 andares por 5,5 milhões de reais.

Assim, o empreendimento mesmo sem existir já perturba o bairro do ponto de vista econômico, porque vale mais a pena você comprar um imóvel e não usá-lo, deixá-lo apodrecendo para que possa vendê-lo muito mais caro depois.

Terminando de responder a sua pergunta, sobre o que que isso tem de consequência para os frequentadores. Primeiro de tudo, um medo social em relação ao sombreamento das praias. É óbvio que não se trata apenas de dois prédios. Não serão apenas esses que vão sombrear a totalidade da praia. A segunda coisa que acaba assombrando os frequentadores da praia tem a ver com a execução do projeto. 4 milhões serão utilizados para obras de requalificação inclusive das ruas. Toda obra exige interdição de um espaço. Como esse espaço vai ser parado no sentido das atividades? A praia que é visitada mensalmente por 6.000 frequentadores segundo estimativa da Associação, fora os residentes. Como essas 6.000 pessoas e os trabalhadores do local vão ficar? É realmente um estado de medo e assombramento.

Simulação do empreendimento imobiliário e do sombreamento causado pelo mesmo/Fonte: Daniel Passos

 

Qual a estratégia que o movimento SOS Buracão vem adotando para fazer frente e derrotar o projeto da construção das torres em frente à praia?

Essa é uma pergunta bem interessante. O primeiro ponto é sempre buscando difundir a nossa causa e nossos argumentos para outras pessoas porque a gente acredita que estamos topando com um problema em que nitidamente o senso civil prevalece, então as pessoas acabam aderindo a nossa causa, seja de forma tímida ou até mesmo ativa e voluntária, a ponto de chegar e contribuir com alguma coisa. Basicamente é isso: divulgar a causa por todas as formas possíveis.

Mas o que é importante de fato é se manter ativo semanalmente, quinzenalmente  e mensalmente. Porque o que a gente sabia no início do movimento é que a cada momento que a gente parasse de protestar provavelmente a Odebrecht colocaria o alvará de construção e daria início a demolição das três casas e subir as duas torres.

Quando a gente começou o movimento, começamos apenas em desespero e mobilização social. Não tínhamos o projeto, e seguimos sem acesso a ele, mas a gente não tinha o conhecimento de como eles poderiam ter feito para ter esse projeto aprovado. Passamos a estudar, a procurar quais instâncias são as competentes para que a gente pudesse atuar e fomos entendendo o poder de fato das instituições. Aprendemos uma coisa e passa para a sociedade, como estamos fazendo aqui com essa matéria do A Verdade, para poder engajar mais pessoas a participarem.

Democracia na minha visão, depois de nove meses de manifestações e protestos, é conflito de agendas. A gente tem que entender como essas agendas se conflitam e onde elas convergem a nosso favor. E eu acredito que foi isso inclusive que levou a gente a conseguir o PL (projeto de lei) nº 318/2023, a qual tenta pedir um uso público dos três terrenos por parte da Prefeitura. Ela compraria na mão da Odebrecht utilizando um argumento de que há um clamor público.

Sabe dizer o momento em que o PL se encontra no trâmite legislativo?

Essa é a parte complicada que aí entra a resiliência que a gente precisa ter diariamente. Conseguimos um PL. Poxa que massa! Aí descobrimos que a PL tem que ser supervisionada por alguém, aprovada para entrar no calendário da Câmara (de vereadores), e aí quando vê, você tem que colocar de certa forma um lembrete pro vereador para que ele se lembre de como que faz a movimentação de vários processos que não param de rolar. Várias PLs são criadas o tempo inteiro.

Mas respondendo a sua pergunta, está nas mãos dos vereadores. O que estamos nesse momento é tentando conseguir mais um espaço novamente na tribuna popular da Câmara de Vereadores para relembrar a importância desse projeto. O que o S.O.S. Buracão precisa fazer é converter o maior número de respostas para esse ensejo. Precisamos de 22 vereadores a nosso favor e a principal ferramenta que a gente tem para isso é o público, é a gente, é a nossa sociedade e não ter medo de se expressar.

Como a prefeitura vem se posicionando frente aos movimentos do S.O.S. Buracão?

A prefeitura ignora o S.O.S. Buracão de todas as formas e isso é uma coisa que precisa ser dita nesse tom. É ridículo. Não é possível que um poder executivo vendo todos os diários oficiais que a gente sai, duas audiências públicas, mais uma participação em uma tribuna popular, mais aparição em diversos meios de mídia, mais diversas marcações, mais de 100 comunicados diretos enviados à SEDUR e a SEMOB. A gente é totalmente ignorado. Não somos os únicos ignorados: há também o STELLA4PRAIAS, o S.O.S. Vale Encantado, o Centro Pulsa,  o Pipoco Salvador e todos os outros movimentos. Que tipo de prefeitura é essa? Que tipo de democracia é essa? Uma democracia unilateral onde ele atua apenas para aquele bloco de vereadores e secretários que estão com ele? Não é assim que se faz uma cidade especialmente uma tão complexa como Salvador.

Uma vitória contra as construtoras que querem erguer as torres em frente à Praia do Buracão pode contribuir para uma mudança na lógica da cidade?

Eu acho que tem partes nessa vitória. Mas precisamos ser humildes e entender que estamos enfrentando a Odebrecht e o poder municipal. Não são entidades pequenas. Diante da importância que elas têm, provocam de fato os reboliços urbanos e as coisas que apontam para o desenvolvimentos ou prejuízos urbanos.

Acredito que são várias vitórias. A primeira é relacionada à causa: queremos o projeto (de lei nº 318/2023) . Aí a gente consegue entrar numa nova vitória que já ocorreu: a sociedade tá muito mais organizada e preparada para debater o PDDU. Não à toa Bruno Reis está com medo porque tem a obrigatoriedade de fazer essa revisão que até agora não conseguiu fazer. Ele nitidamente parece que quer sucatear a informação, o investimento em cima de um documento que é muito importante. É o plano diretor que indica os próximos oito anos da cidade para além da gestão pública. Ou seja, é ele que norteia os dois próximos prefeitos. Uma outra vitória que o movimento traz de fato é que iremos passar esse conhecimento para outros grupos e essa comunicação já começou a ser feita com outras localidades. É uma vitória coletiva que vai além do S.O.S Buracão.

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