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sábado, 5 de outubro de 2024

A Revolta da Chibata e a carta do ministro da Marinha

João Cândido, líder da Revolta da Chibata, foi perseguido, torturado, preso na Ilha das Cobras, expulso da Marinha, morreu doente, na miséria, em 1969. Mas tem o reconhecimento do povo.

Natanael Sarmento | Diretório Nacional da UP


SOCIEDADE – Bastante citada pela pertinência é a frase de Karl Marx segundo a qual “A história sempre se repete: a primeira vez como tragédia, e a segunda, como farsa”. No Brasil, a tradição de todas as gerações mortas da Casa Grande dos brancos e ricos oprime como pesadelo o cérebro dos vivos.

Uma das maiores traições das elites contra os pobres e negros, mestiços, pardos e brancos brasileiros, entre tantas da nossa história de traições, ocorrida na primeira década do século 20, tem agora a repetição atualizada no governo atual do presidente Lula, eleito pela maioria povo, na rejeição e repúdio ao fascista Bolsonaro.

Depois de mais de um século, o ministro da Marinha Marcos Sampaio Olsen, nomeado por Lula, escreveu uma carta à Comissão de Cultura da Câmara de Deputados criticando o Projeto de Lei que reivindica que o nome de João Cândido, o Almirante Negro da célebre Revolta da Chibata, seja inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

O ato do ministro da Marinha é a pura concepção do tronco, dos tempos dos maus tratos, uma chicotada da elite branca da Casa Grande contra pobres e pretos. Os heróis dessa pátria, para eles, são brancos, matadores de indígenas, caçadores de quilombolas, genocidas de camponeses ou almirantes, que jamais lutaram em batalha alguma. O ministro de Lula alega que “é ilícito recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar supostos direitos”. A memória seletiva do ministro, porém, esquece que os militares recorreram às armas que lhes foram confiadas para dar o golpe de Estado em 1964 e derrubar um presidente legitimamente eleito pelo povo. 

Lembrar para não esquecer

O que foi a Revolta da Chibata e quem foi João Cândido, o seu líder?

Foi uma rebelião de marinheiros, a maioria negros, entre 23 e 27 de novembro de 1910, contra os castigos corporais – chibatadas – aplicados pelos oficiais superiores contra seus subordinados. Os marinheiros prenderam a oficialidade e assumiram os navios da Marinha fundeados na Baía da Guanabara (Rio de Janeiro). Exigiram do governo leis que abolissem os maus-tratos físicos. Como se vê, a abolição da escravidão, de 1888, não era completa na Marinha do Brasil da primeira década do século 20.

O marinheiro Marcelo Rodrigues recebia 250 chibatadas diante da tripulação do Navio Minas Gerais. A cena aviltante detonou a revolta dos seus companheiros. Liderados pelo marinheiro João Cândido Felisberto (o Almirante Negro), 30 anos à época, iniciaram a revolta em luta corporal.

Nas tratativas de pacificação, os amotinados enviaram mensagens com suas reivindicações ao governo. O presidente General Hermes da Fonseca ganhava tempo para isolar e enfraquecer os revoltosos. Os marinheiros amotinados dispararam um tiro de canhão que acertou um cortiço da então Capital Federal. Duas pessoas morreram. A ação produziu enorme efeito na opinião da população da cidade. A Capital da República estava em pânico.

Um manifesto com as reivindicações, resumidamente, exigia melhores condições de trabalho, melhoria do soldo, fim dos castigos corporais e anistia dos rebelados.

Premido pela ameaça real, forçado pela opinião pública simpática à causa dos marinheiros, o presidente Hermes mentiu. Respondeu que aceitava as reivindicações dos revoltosos e selou a paz. Mas o governo traidor, com a cumplicidade da imprensa burguesa, desqualificou os insurgentes e quebrou a palavra dada. Tão logo os marinheiros baixaram a guarda, entregaram as armas e os navios, o governo desencadeou a violenta repressão. A devassa e a caça às bruxas, com prisões, expulsões e deportações decretou mais de mil exonerações por “indisciplina”.

Foram 14 mortos: os dois civis do disparo de canhão e 12 militares, entre oficiais e marinheiros do lado legalista. Já do lado dos revoltosos, somam-se mais de 200 mortos. Ao todo, dois mil foram expulsos e deportados. Os legalistas foram sepultados como heróis, com honras militares. Os insurgentes, enterrados como traidores da pátria.

Lições da História

João Cândido, verdadeiro herói do povo brasileiro, perseguido, torturado, preso na Ilha das Cobras, expulso da Marinha, morreu doente, na miséria, em 1969. Mas tem o reconhecimento do povo. Recebeu de João Bosco uma bela homenagem na música “O Mestre Sala dos Mares”: “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ O Dragão do Mar reapareceu/ Na figura de um bravo marinheiro/ A quem a história não esqueceu…/ Salve o Almirante Negro”. Merece ter seu nome no Livro dos Heróis da Pátria.

Em meio à recente polêmica, o único filho vivo de João Cândido, Adalberto Cândido, 85 anos, declarou: “Quero ver meu pai herói popular, não herói da Marinha”. E ainda deu uma aula ao ministro: “Ele teria que agradecer aos marinheiros de 1910 pela Marinha de hoje. Naquela época, não tinha disciplina, hierarquia, não tinha nada. Os marinheiros eram os filhos rebeldes que os pais colocavam na Marinha. Os oficiais eram os filhos dos fazendeiros. A Marinha só foi modernizada depois disso. A última escravidão do Brasil foi na Marinha”.

A luta de classes dos oprimidos contra os opressores não se extingue com meras palavras e promessas dos opressores donos do poder. Desarmar-se materialmente em troca de promessas do inimigo é ilusão.

Matéria publicada na edição nº 291 do Jornal A Verdade

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