Trabalhadores de aplicativos denunciam exploração dos donos das plataformas

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A precariedade é a marca das condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, categoria que possui diferentes perfis, jornadas de trabalho e níveis de dedicação à atividade. Sob a ilusão de empreendedorismo e flexibilidade, são submetidos a condições abusivas, que os tornam reféns do poder do patrão invisível (os donos das plataformas digitais).

Karen Fernanda Nicoletti* | Porto Alegre (RS)


BRASIL – Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existiam, no Brasil, 778 mil pessoas que exerciam, como trabalho principal, o transporte de passageiros por meio de aplicativos. Atualmente, esse número é calculado em 1,5 milhão de trabalhadores. Com um sistema de transporte público cada vez mais deteriorado, com ônibus, trens e metrôs sucateados e superlotados, ocorre, paralelamente, o crescimento da demanda pelos aplicativos.

A precariedade é a marca das condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, categoria que possui diferentes perfis, jornadas de trabalho e níveis de dedicação à atividade. Existem desde os que possuem outro emprego fixo até os aposentados, que utilizam a atividade como complemento de renda, passando pelos trabalhadores dedicados exclusivamente à função, sejam proprietários sejam locatários de veículos.

Entre os trabalhadores dedicados exclusivamente à atividade, temos os locatários de veículos, que são os mais vulneráveis nessa relação. Além de gerarem lucro para a plataforma, também geram renda para a locadora do veículo, o que aumenta ainda mais a exploração da sua força de trabalho.

Já os trabalhadores que utilizam a atividade como renda extra, conseguem se concentrar em jornadas menores, em horários mais favoráveis e com tarifas um pouco melhores. Alguns possuem garantias trabalhistas asseguradas em suas atividades principais, o que não é a realidade da maioria.

Com a implementação de políticas neoliberais que beneficiam os patrões e visa a desmantelar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os motoristas de aplicativos se veem numa condição de escravidão moderna. Sob a ilusão de empreendedorismo e flexibilidade, são submetidos a condições abusivas, que os tornam reféns do poder do patrão invisível (os donos das plataformas digitais).

Enquanto são incentivados a se enxergarem como empreendedores de si mesmos, na prática, são obrigados a cumprir metas, longas jornadas e tarifas impostas pelas empresas. O desempenho é monitorado e controlado a cada minuto, sem garantia de remuneração digna ou segurança no trabalho.

Os desligamentos e bloqueios de contas arbitrários também são uma realidade, obrigando este trabalhador a ficar parado e, consequentemente, sem receber nada. Alguns recorrem a meios ilegais para manter sua fonte de renda com o uso de contas falsas, comercializadas em mercado paralelo. Isso, porém, provoca mais uma insegurança ao trabalhador e aos passageiros.

Nesse cenário, a falta de proteção trabalhista expõe os motoristas a riscos que vão além do contexto individual. Doenças, acidentes e demissões podem gerar impactos sociais e familiares, criando um ciclo de precariedade que afeta toda a sociedade.

Foto retrata trabalhadores de aplicativos em manifestação.
Trabalhadores de aplicativos manifestam pelos seus direitos. Foto: Arquivo.

Projeto de Lei 12/2024 mantém superexploração

Diante dessa grave situação, os trabalhadores de aplicativos se mobilizam e organizam diversos protestos e até greves contra a superexploração que sofrem das plataformas. Para tentar diminuir esses protestos, foi apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 12/2024, que pretende “uma regulamentação inovadora para um tipo de trabalho diferente”. Porém, uma análise séria desse projeto revela que, na prática, ele legaliza a ausência de direitos para estes trabalhadores, além de permitir que as empresas imponham punições através do controle de atividades e métricas, como taxas de aceitação e cancelamento de pedidos, podendo, inclusive, suspender, bloquear ou excluir os prestadores de serviço que não atendam às determinações exigidas. Além disso, a proposta estabelece sistemas de avaliação dos trabalhadores e usuários, criando uma relação de trabalho subordinada, vinculada e controlada, sem garantia de direitos trabalhistas (descanso remunerado, férias, 13º, FGTS, seguro-desemprego, adicional noturno, periculosidade, etc.).

A carga horária permitida é de até 12 horas diárias, sem restringir a quantidade de dias na semana, podendo totalizar até 84 horas semanais em cada plataforma. Porém, esta contagem se refere apenas ao tempo de viagem, desconsiderando o tempo de espera, o que pode transformar facilmente essas 12 horas em 15 horas, ou até mais.

A remuneração mínima estabelecida diverge dos custos reais relacionados a esta atividade. De acordo com a proposta, os profissionais devem receber R$ 32,10 por hora trabalhada, sendo R$ 24,07 destinados a custos operacionais (celular, combustível, manutenção do veículo, custos de depreciação, seguro, impostos, etc.) e R$ 8,03 como remuneração do trabalho em si.

O projeto, portanto, ignora completamente que os custos operacionais estão relacionados também à quilometragem percorrida, e não somente ao tempo.

Quanto à remuneração pelo serviço prestado, a proposta apresentada não foge muito da realidade dos preços praticada atualmente, que já é um ponto de descontentamento geral da categoria, especialmente em horários de baixa demanda. O PL também não fez qualquer referência aos serviços que possuem tarifas diferenciadas, como confort e executivo.

Previdência Social

Um dos principais pontos apresentados no PL 12/2024 é a promessa de garantir aposentadoria aos trabalhadores de aplicativo. Mas também aqui o projeto é insuficiente. Vejamos. A proposta contempla a obrigatoriedade de inscrição dos trabalhadores junto ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS), com o recolhimento, por parte dos trabalhadores, de 7,5% sobre a remuneração, enquanto os empregadores terão que recolher 20%.

Tomemos como exemplo o valor mínimo proposto por hora trabalhada: R$ 32,10, com uma remuneração ao trabalhador de 25%, equivalente a R$ 8,03. Neste caso, o motorista teria que recolher para a Previdência R$ 0,60 (7,5%) e o empregador, R$ 2,00 (20% do valor).

Parte dos motoristas já possui alguma forma de vinculação previdenciária através de MEI, carnê do INSS ou outra relação de trabalho, e muitos demonstram descrença em relação à aposentadoria existente hoje após a Reforma da Previdência imposta pelo fascista Bolsonaro e pelo Congresso reacionário, o que torna este direito pouco atrativo.

Outro ponto abordado pelo projeto é o auxílio-maternidade, que passa a garantir o acesso aos direitos previdenciários previstos para as trabalhadoras seguradas pelo INSS. No entanto, o percentual de mulheres na categoria de motoristas é baixo, representando apenas cerca de 6%.

Falta de democracia na elaboração do projeto

Apesar de ter sido apresentado como resultado de um debate entre os donos das plataformas e as centrais sindicais, a verdade é que houve pouca participação da classe trabalhadora. A divulgação do conteúdo do PL só foi feita aos trabalhadores quando o Governo Federal enviou a proposta para tramitação no Congresso Nacional, sem possibilidade de alterações.

De fato, o Ministério do Trabalho e os sindicatos não garantiram a participação ativa dos trabalhadores, não ouviram nem organizaram a categoria, e, muito menos, denunciarem as perdas durante as negociações. A falta de demonstração de força e organização levantou questionamentos sobre a eficácia dos sindicatos em representar os interesses dos motoristas de aplicativo. Como resultado, muitos desses trabalhadores se sentem descrentes e afirmam que os sindicatos não os representam.

Diante desse cenário, há também críticas ao projeto no ponto em que prevê a representação da categoria por uma entidade sindical da categoria profissional denominada “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas” para fins de negociação coletiva, cabendo a este sindicato assinar acordos e convenções coletivas e representar coletivamente os trabalhadores nas demandas judiciais e extrajudiciais.

Organizar e lutar 

Por fim, sob a ótica do Direito do Trabalho, a modalidade dos motoristas de aplicativo, como acontece hoje, enquadra-se como uma relação de emprego, em que o trabalhador presta um serviço de forma remunerada e não eventual, sob total dependência da plataforma, que é quem decide o ingresso e o rendimento desse trabalhador e ainda detém todo o funcionamento dos algoritmos, que não são compartilhados com os “colaboradores”. E justamente por não haver um contrato formal, a ilegalidade na relação trabalhista desta categoria fica ainda mais evidente, não contando com qualquer tipo de fiscalização e apoio por parte do Estado.

Atualmente, mais de 10 mil processos trabalhistas envolvendo motoristas de aplicativo estão em andamento na Justiça do Trabalho. Outros tantos processos já reconheceram o vínculo empregatício com base nos artigos segundo e terceiro da CLT.

O caminho, portanto, para mudar essa realidade e garantir os direitos desses trabalhadores é avançar na organização da categoria em cada cidade, em nível nacional, e seguir realizando atos, greves e breques de apps.

*Karen Fernanda Nicoletti é graduada em Tecnologia da Informação e organizada no Movimento Luta de Classes (MLC); motorista de app uberizada após 28 anos de CLT

Matéria publicada na edição nº 291 do Jornal A Verdade