Anúncios dos governos de novas casas para pessoas que estão em abrigos no RS não atende demanda dos refugiados climáticos. Mais de um mês após o início das enchentes quase nada foi feito.
Redação RS
BRASIL – Após mais de um mês das enchentes, o presente de milhares de famílias do Rio Grande do Sul é de tragédia e o futuro é totalmente incerto. Os números evidenciam o sofrimento do povo do RS: 175 pessoas mortas pelas enchentes; sete mortes confirmadas por leptospirose (dez óbitos seguem sob investigação); 581 mil desalojados e 40 mil que perderam suas casas e moram em abrigos precários.
O município de Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, tem o maior número de pessoas em abrigos: 22 mil. Laura Lopes, 22 anos, estudante de História, mora no bairro de Mato Grande e foi uma das atingidas. “Quando chegou a sexta-feira, que foi o dia que começou tudo, eu estava em casa. Meus avós já estavam dormindo, quando escutei um barulho. Era minha mãe batendo com muita força na janela, chamando. Ela entrou e começou a falar pra gente arrumar nossas coisas e sair porque tinha passado um carro da Prefeitura avisando pra sair. Saímos e, na manhã seguinte, a gente deu uma olhada na nossa rua. Então voltamos pra casa”, ela relata.
No dia 04 de maio, tocou de novo o alarme de evacuação no bairro e, desta vez, a família de Laura teve que sair levando algumas poucas coisas nas mochilas. Agora, as ruas estavam sem luz e sem água.
“A casa do nosso vizinho já estava alagando e a água já estava quase pelo joelho. Foi aí que percebemos que era realmente sério. Fomos para o abrigo do ginásio do LaSalle, que tinha uma boa estrutura. Mas, no primeiro dia, eram 700 pessoas, então era muito difícil. Eu passei três dias levantando, arrumando as coisas, correndo e indo para outro lugar. Fiquei de cama por uma semana, não tinha vontade de fazer nada. Eu não conseguia me alimentar. Outras pessoas também não estavam conseguindo se alimentar. A comida, às vezes, vinha fria ou as marmitas vinham com alguma coisa que a pessoa passava mal depois. E aí começaram a ter alguns casos de intoxicação alimentar. Então, quando a gente estava no abrigo, a gente nunca sabia como ia ser o dia de amanhã, se a água ia chegar, se a gente teria que fugir para outro lugar”, conta Laura.
O professor João Petry Gentil, 23 anos, morador de Bom Retiro do Sul, cidade que fica em uma região anualmente atingida pelas enchentes, conta o que está vivendo. “As casas nessa região já são construídas mais altas para a água não entrar. No ano passado, foi a primeira vez, em mais de 60 anos, que a água entrou dentro das casas, chegando até a metade. Algo que ninguém esperava. Na enchente deste ano, a água entrou dentro das casas, mas superou a do ano passado, cobrindo até o telhado. Ninguém acreditava que era possível. Foi uma cena de desespero e tristeza, perdemos praticamente tudo e, até o momento, não conseguimos retornar a nossas casas”.
João Petry é militante da Unidade Popular (UP) e, junto com os outros militantes da UP, ajuda as pessoas atingidas na limpeza de suas casas, fazendo distribuição de alimentos e produtos de limpeza. “Na visão de alguém que foi atingido diretamente pela enchente e que está envolvido também como voluntário, percebo que essa ajuda é fundamental, tanto para dar mantimentos, quanto para dar esperança. A solidariedade de classe é fundamental nesses momentos”.
Abandono dos desabrigados
Na Zona Leste de Porto Alegre, o Movimento de Mulheres Olga Benario organizou um abrigo somente para mulheres e crianças. Ketlin Bastos, do bairro Arquipélago, da Ilha das Flores, estava com sua filha no abrigo da Brigada Militar e achou melhor ir para o abrigo só com mulheres. “Aqui somos bem tratadas, fazemos boas refeições, temos segurança, as pessoas não estão apenas doando coisas materiais, mas sim doando energia e muito carinho”.
Nos abrigos da Prefeitura de Porto Alegre, há muitos relatos sobre a desorganização e precariedade. Um dos abrigos mais problemáticos é o Centro Vida, na Zona Norte. Ele abriga mais de 600 pessoas em um único pavilhão, e 400 cachorros em outro ginásio.
“O telhado tem aberturas por onde passa muito vento à noite. É muito frio e, como não temos divisões internas, sentimos todo o vento. A gente começou a levantar pallets para tentar se proteger do vento, para conseguir dormir. Além disso, também existem as dificuldades para tomar banho, pois, apesar dos vários chuveiros, a maioria está estragada. Agora mesmo, só funcionam dois chuveiros quentes. Nesse frio, não tem como todos tomarem banho”, relata uma desabrigada.
As pessoas também reclamam da alimentação e falta de organização, pois as refeições atrasam e, a cada dia, é um horário diferente. É um descaso grande, particularmente com as crianças e os idosos, que estão passando por um verdadeiro pesadelo.
Na última semana, depois que a água baixou, muitas famílias voltaram para suas casas e estão limpando toda a lama que ficou acumulada. Outras, querem voltar para onde moravam, mas os níveis de água ainda permanecem altos, com risco de novas inundações. E aqueles que perderam suas casas estão nos abrigos e não sabem se terão casas ou ficarão morando nos abrigos. As prefeituras e o governo falam em reconstrução, mas nenhuma casa foi construída até agora em todo o estado. Fato é que essas milhares de pessoas pertencem à classe trabalhadora, são pobres e não tem dinheiro para pagar um aluguel. Não há entre os milhares de desalojados e desabrigados, um só rico.
O futuro dos abrigos
No último dia 23 de maio, Porto Alegre viveu uma nova inundação. Choveu muito e alagou novamente vários bairros, além de outros que ainda não tinham sido atingidos. Assim, vários abrigos que estavam ameaçados de fechar pela cobrança da Prefeitura e do Governo do Estado, voltaram a ser ocupados.
Diante desse caos, a proposta do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), é um escárnio: fazer um alojamento no bairro de Porto Seco (Sambódromo) para abrigar 10 mil refugiados climáticos. Na prática, quer nos impor, um campo de concentração e garantir lucro para grandes empreiteiras. Acha o prefeito que o povo gaúcho não tem direito a morar dignamente, a ter uma casa, mas a viver num alojamento.
Na verdade, mais de um mês após o início das enchentes e, até agora, quase nada foi feito. As ruas estão tomadas de lixo, móveis e eletrodomésticos que não funcionam mais. Os bairros mais pobres se transformaram em verdadeiros aterros a céu aberto. E ainda há bairros cobertos de águas, como Sarandi e Humaitá. O aumento de doenças, como leptospirose, dengue e Covid-19, e as Unidades Básicas de Saúde estão lotadas. Mas, prefeitos e governador só pensam nas eleições de outubro.
A população dos abrigos continua sem perspectiva de recuperar ou ter suas casas em outro lugar, o governo e prefeituras do RS continuam sem dar perspectiva real do problema. Resta ao povo gaúcho avançar sua unidade, se organizar e exigir seus direitos. Não precisamos mais de governos dos ricos, queremos um governo dos pobres e pelos pobres, por isso, nossa luta é pelo poder popular.
Governo federal anuncia casas para parte dos desabrigados
Após o fechamento da edição nº 293 do Jornal A Verdade, o Governo Federal anunciou que comprará 2 mil imóveis através da Caixa Econômica Federal para destinar aos desabrigados. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, anunciou também que o governo federal irá comprar casas e apartamentos em construção através do Minha Casa, Minha Vida das faixas mais baixas, para destinar às famílias que estão em abrigos no RS.
Por sua vez, assim como o prefeito de Porto Alegre, o governador do RS, continua com a política de “casas provisórias” para a população dos abrigos. No último dia 7 de junho, o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou a destinação de 86 milhões de reais para a construção de 750 casas, sendo 250 definitivas e 500 provisórias.
Todos estes anúncios, no entanto, estão muito longe da necessidade real das dezenas de milhares de desabrigados e refugiados climáticos das enchentes do Rio Grande do Sul.
Matéria publicada na edição impressa nº 293 do Jornal A Verdade (primeira quinzena de junho de 2024).