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quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O povo paga juros duas vezes: os juros dos bancos e os juros da dívida pública

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Em 2023, o Brasil pagou, de juros e amortizações da dívida pública, quase R$ 2 trilhões. Isso representa 43% de todo o Orçamento nacional. No mesmo período, o Governo Federal investiu o percentual irrisório de 0,3% em Transporte e apenas 3% em Educação e 3,7% em Saúde. Para explicar os mecanismos de como a dívida pública suga nossas riquezas em benefício de meia dúzia de grandes banqueiros, deixando o povo à mingua, A Verdade entrevistou Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida.

Da Redação


A Verdade – Por que surgiu a Auditoria Cidadã da Dívida e qual a importância da Campanha Nacional por Direitos Sociais?

Maria Lúcia Fattorelli – A Auditoria Cidadã da Dívida nasceu no ano de 2000, no âmbito do Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa. Ele foi organizado por um conjunto de entidades da sociedade civil: sindicatos, associações, Campanha Jubileu Sul, Igrejas, partidos políticos, movimentos sociais, enfim. Uma das perguntas era: “Você concorda em continuar pagando a dívida pública sem fazer a auditoria prevista na Constituição?”. Naquela ocasião, em menos de uma semana, ainda sem redes digitais, nós colhemos quase seis milhões de votos, com 90% dizendo que não concordavam. Isso trouxe um grande respaldo para essa luta. Nós entregamos o resultado do plebiscito ao Congresso Nacional, ao STF e ao Poder Executivo. Meses se passaram, mas nenhuma força política se moveu. Aí nós, as entidades que organizaram o plesbicito, nos reunimos e dissemos: “Não vamos deixar essa mobilização social se perder. Vamos criar uma auditoria feita pelos cidadãos para os cidadãos”.

Agora, estamos desenvolvendo, junto com várias entidades da sociedade civil, inclusive a Unidade Popular, a Campanha Nacional por Direitos Sociais. Nosso objetivo, ao analisar a dívida pública (tanto interna quanto externa, nas esferas federal, estadual ou municipal), sempre foi apontar qual o papel que essa dívida exerce no Orçamento. A dívida sangra a maior parte dos recursos, está por trás do Teto de Gastos do Governo Temer, do arcabouço fiscal do atual Governo, das contrarreformas. A Reforma da Previdência foi pra que? Pra adiar, diminuir ou cortar direitos da população pra sobrar mais dinheiro pra dívida. Todas a privatizações (desde Collor e Fernando Henrique, passando pelos demais governos, pois todos privatizaram) foram sob a justificativa de pagar a dívida.

Então que dívida é essa? Ela está por trás de todos os prejuízos sociais, patrimoniais, financeiros do povo brasileiro. Então essa campanha vem pra denunciar isso. E nós só teremos plenitude de direitos sociais quando enfrentarmos esse sistema da dívida. O país tem mantido, nos últimos anos, cerca de R$ 5 trilhões em caixa.

Então é um absurdo que tenhamos grande parte da população brasileira na pobreza, na miséria, passando fome. E esse modelo econômico que privilegia a dívida é o mesmo que dá tudo pro agronegócio, pra mineração predatória e pro setor financeiro, mas deixa a maioria da população à mingua. Então essa campanha por direitos sociais visa a popularizar esses temas e fortalecer as lutas sociais.

Como e em qual momento histórico essa dívida pública surgiu?

Quando a gente fala em dívida pública, as pessoas, em geral, fazem essa relação com a sua dívida privada. Neste caso, não tem nada a ver. A grande mídia gosta de dizer: “O país está endividado porque agiu igual a uma família, que gasta mais do que tem”. Mas não é isso. A dívida pública é outra história. Na maioria das vezes, o dinheiro não chegou efetivamente. O mercado financeiro foi muito esperto ao escolher a dívida pública como desvio do dinheiro para setores privilegiados.

Houve uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida Pública na Câmara dos Deputados em 2009 e 2010. Um dos requerimentos aprovados foi para que a Procuradoria da Fazenda Nacional apresentasse todos os contratos de dívida externa que justificaram aquele crescimento brutal da dívida externa durante a Ditadura Militar. Quando começou a Ditadura, em 1964, a dívida externa era de pouco mais de 3 bilhões de dólares. Quando terminou, era mais de 85 bilhões de dólares. Então, a dívida externa se multiplicou mais de 30 vezes nesse período.

Eu era auditora da Receita Federal e fui requisitada para assessorar a CPI. Então, nós analisamos todos os contratos e, somando tudo que foi aprovado no Senado, os títulos emitidos no exterior, não explica nem 20% desse crescimento. O que pode ser, então, esses outros 80%? Financiamento da própria Ditadura, porque isso, até hoje, é mantido em arquivos sigilosos. Então é uma dívida totalmente ilegítima, jogada nas costas do povo. Tem um termo jurídico que fala uma dívida odiosa, quando é uma dívida contratada sem transparência alguma por regimes totalitários e contra os interesses do povo.

Outra coisa que está aí nesses 80%: um dos “feitos” da Ditadura foi criar o Banco Central, ainda em 1964. Em 1967, o Banco Central baixou uma circular dando liberdade total para os bancos que atuavam no Brasil, inclusive os bancos estrangeiros, para se endividarem à vontade. Foi uma farra. Os bancos pegavam dólar lá fora, a juros baixinhos, e o Banco Central convertia em moeda nacional. Aí os bancos emprestavam ao povo, a juros exorbitantes, ganhando uma fortuna, só que os bancos ficavam com essa dívida lá fora. Na década de 1980, quando veio a crise da dívida e os bancos internacionais começaram a aumentar a taxa de juros, toda essa dívida privada foi transformada em dívida pública. Pegaram a dívida privada, contraída por bancos e empresas, e somaram ao estoque da dívida pública. Durante a CPI, o Banco Central teve que admitir que concordou com essa operação, mas que não saberia dizer o valor exato porque os controles teriam se perdido. Alegações absurdas! E ficou por isso mesmo.

Fatorelli no plenário do Congresso Nacional. Foto: Agência Senado.

E o que é que aconteceu com essa dívida externa gigante lá na década de 1980? Quando transformaram a dívida privada em dívida pública, criaram novos acordos internacionais em que o Banco Central assumia o papel de devedor perante os bancos privados internacionais. Pra começo de conversa, ele nem poderia ter assumido o papel de devedor, mas esses contratos foram feitos em Nova York, sob as leis norte-americanas, rifando a Constituição brasileira. Os novos contratos previam a emissão de novos títulos da dívida externa, desta vez, em Luxemburgo (que é um paraíso fiscal), e eram chamados pela própria mídia, na época, de “papéis sujos”, que não eram negociados em nenhuma bolsa de valores do mundo. Posteriormente, uma parte desses papéis foi transformada em novos títulos (mais limpos, mais legalizados), e outra foi transformada em dívida interna em 1994, no início do Plano Real, quando os juros chegaram a quase 50% ao ano. E uma outra parte ainda foi aceita como moeda de privatização. Metade da Vale do Rio Doce foi paga com essa papelada podre.

Resumindo, apenas uma parte da dívida está explicada, por exemplo, para financiar a construção da hidrelétrica de Itaipu e outras, da Eletrobras, da Companhia Siderúrgica Nacional, da Usiminas, de ferrovias, etc. Então, a questão é: quanto de dinheiro realmente entrou no país?

Aqui no Brasil, os banqueiros estão sempre no topo da lista das pessoas mais ricas do país. Por quê?

Aqui no Brasil, existe a chamada “Bolsa Banqueiro”. Hoje, nós somos praticamente obrigados a ter conta bancária. Então, nosso dinheiro, nosso salário, está lá no banco. Inclusive, é uma mentira que o brasileiro não faz poupança. Em moeda, dinheiro da sociedade, tem quase dois trilhões de reais em poupanças nos bancos. O que é que os bancos no Brasil deveriam fazer? O que os bancos fazem mundo afora: emprestar dinheiro a juros baixos. Por que tantas pessoas fazem o financiamento e não dão conta de pagar? Porque os juros aqui são exorbitantes. E por que os bancos se dão ao luxo de cobrar juros exorbitantes? Porque eles pegam todo esse dinheiro, que é da sociedade, que nem pertence a eles, e depositam no Banco Central e ganham juros em cima dessa operação. Essa é a “Bolsa Banqueiro”. O povo paga juros duas vezes: os juros dos bancos e os juros da dívida pública.

E essa conta sempre chega. Inclusive, setores como o do agronegócio e o da mineração conseguem manter na legislação isenções injustificadas. Além de não pagaram essa conta junto com o povo, também não respondem pelos danos ambientais que causam. Vemos agora a calamidade no Rio Grande do Sul.

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