Dois anos do Massacre de Guapo’y, no Mato Grosso do Sul

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Há dois anos, a PM do Mato Grosso do Sul violentou e intimidou um grupo de pessoas desarmadas da etnia Guarani-Kaiowá em uma ação ilegal de reintegração de posse no que ficou conhecido como o Massacre de Guapo’y.

Douglas Soares, Luiza M. e Gabriella Ortigoza | Campo Grande (MS)


BRASIL – O dia 24 de junho marca mais uma das várias ocasiões em que o Estado brasileiro se tornou um agente ativo na perpetuação do genocídio continuado sobre sua população indígena. Há dois anos, nesta data, o Batalhão de Choque da PM do estado de Mato Grosso do Sul empregou uma força de 65 homens, 16 viaturas e um helicóptero para violentar e intimidar um grupo de pessoas desarmadas da etnia Guarani-Kaiowá em uma ação ilegal de reintegração de posse. Esta ação culminou no assassinato de Vitor Fernandes, de 42 anos, e no ferimento de dezenas de pessoas, incluindo crianças e idosos, no evento que passou a ser chamado de Massacre de Guapo’y.

Infelizmente, esse tipo de intervenção estatal violenta não é incomum para os Guarani-Kaiowá. Nativos da região do Cone Sul do estado de Mato Grosso do Sul, essa população teve seu território original de forma drástica reduzido ainda durante a Primeira República, quando foram confinados em poucas reservas em um processo para o qual não foram consultados.

Essa conduta fez parte de um plano governamental para colonizar a região de fronteira e exterminar a população indígena, visando apagar sua cultura. Como se não bastasse, todas as reservas foram alvo de grilagem facilitada pela corrupção das autoridades locais pelo interesse do capital, de forma que o território demarcado na atualidade possui pouco mais da metade de sua área original.

Décadas de extermínio

O processo de expulsão dos indígenas de suas terras originais não foi pacífico. Porém, eles não possuíam os mecanismos legais para abrir ações de contestação até 1988, já que eram considerados “relativamente capazes” e, portanto, passavam por tutela do órgão indigenista. Mesmo hoje, dentro da jurisdição da democracia burguesa, não lhes garantiram a devolução das terras “desaparecidas”.

Apesar da comprovação documental de que suas tekoha (termo na Língua Indígena Guarani, utilizado para se referir a seus territórios) lhes foram tomadas, os processos de demarcação correm lentamente na justiça, esbarrando nos interesses da burguesia e no aparelhamento dos instrumentos do Estado. Essa é uma batalha que perdura há décadas.

Confinados em um espaço pequeno demais para manter sua subsistência, dignidade e tradições, e tendo ficado claro que o aparelho jurídico brasileiro não atuará em seu favor, a população originária reconheceu que somente reaveriam suas tekoha pelo seu próprio esforço. Mas novamente o Estado lhes mostraria a quem ele responde. Desde 2013, foram registrados dezenas de casos do uso ilegal e desproporcional das forças de segurança em defesa da propriedade privada no Mato Grosso do Sul, vários dos quais culminaram em assassinato. O massacre de Guapo’y foi um deles.

A luta pela retomada da terra Guapo’y

Localizado no município de Amambai, Guapo’y é um território que consta como pertencente à Reserva Amambai em seu documento de demarcação em 1915, mas passou a também ser considerado propriedade privada ao longo dos anos, criando uma situação de sobreposição de fronteiras.

O movimento pela retomada do tekoha Guapo’y intensificou-se no final de maio de 2022, quando o também Guarani-Kaiowá Alex Lopes, de 17 anos, foi assassinado enquanto cortava lenha. No dia 23 de junho de 2022, os indígenas Guarani-Kaiowá realizaram uma ação legítima de retomada de suas terras, ocupando a fazenda localizada no histórico território Guapo’y.

Por envolver sobreposição de fronteiras e aspectos étnicos, ela deveria necessariamente ser manejada pela Polícia Federal com a participação da FUNAI e na vigência de mandado judicial. Isso não impediu as forças repressivas do Estado de atuarem em discordância com sua própria legislação.

O território reclamado em 2022 encontrava-se sob domínio da Empresa VT Brasil Administração e Participação Ltda., de propriedade do empresário Waldir Cândido Torelli. Torelli foi também fundador do grupo Torlim, que, por sua parte, era controlador do Fribai, um frigorífico que figurava na lista dos 500 maiores devedores da União, com uma dívida ativa acumulada de R$ 493,2 milhões.

Não é surpresa que a polícia responderia ao chamado da empresa. Sem ordem de despejo e utilizando a justificativa de combate a roubos e cárcere privado, policiais militares invadiram a área, disparando contra mulheres, idosos, crianças, jovens e homens indígenas. Após perícia do Ministério Público Federal, foi constatado que a acusação de roubo tratava-se de uma mentira, já que itens de valor não foram subtraídos da fazenda.

A operação para expulsar os indígenas: o Massacre de Guapo’y

A operação foi filmada pela população, e os vídeos podem ser acessados no perfil da Assembleia Geral do Povo Kaiowá e Guarani (@atyguasu). A ação resultou na morte de Vitor Fernandes, de 42 anos, que foi covardemente assassinado com dois tiros nas costas e um na coxa, além de cerca de 20 feridos.

Nos números oficiais, apenas oito Guarani-Kaiowá foram oficialmente registrados como feridos, já que somente aqueles que deram entrada no hospital de Amambai foram considerados. Após receberem alta, esses alanceados foram detidos. Devido a situações como essa, muitos feridos não buscaram socorro, pois não confiam na assistência do estado conivente do agronegócio.

Essa não foi a única morte resultante. A comunidade ainda foi punida com o assassinato de duas de suas lideranças: Márcio Moreira e Vitorino Sanches. Márcio foi atraído para fora da reserva com uma proposta de emprego quando sofreu uma emboscada, levando tiros de um homem que o aguardava no local marcado.

O assassinato ocorreu duas semanas após a ação do dia 24. Vitorino Sanches, por sua vez, foi emboscado e morto no dia 13 de setembro, enquanto se dirigia ao seu carro no centro da cidade de Amambai, após sobreviver a um atentado prévio no dia 2 de agosto.

Esta é a realidade oculta no Estado do Agro: violência e completo desprezo pela vida humana em favorecimento ao lucro de poucos. Grandes famílias tradicionais controlam a política local, e instituições públicas estão completamente aparelhadas para servir ao seu mandatário: o agronegócio.

A luta pela terra sempre será justa. Lutemos pelos que se foram e pelos que vivem. Somente a unidade em luta pode trazer um novo horizonte de futuro; ao estado burguês nada vale o sangue do povo. Guarani-Kaiowá PRESENTE!