As eleições na Venezuela, com a vitória de Nicolás Maduro e o golpismo da oposição, reacenderam debates sobre a crise política e a influência imperialista no país. O Jornal A Verdade aborda esses temas em uma matéria especial, destacando as origens e os impactos deste conflito no país e na América Latina.
Redação
INTERNACIONAL – Nos últimos dias, a imprensa brasileira e internacional tem acompanhado de perto as eleições venezuelanas, cobrindo seus antecedentes, a realização e os desdobramentos. A vitória eleitoral de Nicolás Maduro e a recusa da oposição direitista em aceitá-la, seguida por posicionamentos favoráveis e contrários de líderes mundiais, reacendeu o debate sobre a situação política e econômica da Venezuela, a sua democracia, e a interferência do imperialismo e da imprensa internacional em um dos maiores produtores de petróleo do mundo.
O jornal A Verdade tem documentado as principais atividades na Venezuela há muito tempo. Desde a luta anti-imperialista do país no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, passando pela crise do petróleo em 2008, a morte de Chávez, a eleição de Maduro, até as mais recentes tentativas golpistas por parte do imperialismo. Para contextualizar e enriquecer o debate sobre a situação enfrentada pela Venezuela, as origens e possíveis consequências dos conflitos em curso, e o papel do imperialismo na atual crise política que afeta seu povo, produzimos uma matéria especial sobre o tema.
Fábricas ocupadas: exemplos do Poder Popular
Nas últimas edições impressas do jornal A Verdade, nossa reportagem foi até a Venezuela conversar e testemunhar o trabalho de militantes sociais que tentam superar as sanções econômicas e construir espaços de poder popular. Nossa equipe foi a duas fábricas tomadas pelos trabalhadores depois que seus patrões imperialistas decidiram sair do país.
Durante esta visita, ficou claro que é possível os trabalhadores tomarem as rédeas da sociedade e que não precisam dos patrões. Observamos que eles conseguiam atender às necessidades da sua comunidade com sua produção local e que a ausência de patrão melhorou e muito a sua qualidade de vida. No entanto, o caso das fábricas “Thomas Grecco”, ocupada por mulheres operárias, e da fábrica de alimentos “Proletários Unidos”, não é a regra na Venezuela da Revolução Bolivariana.
Na sociedade venezuelana, elementos socialistas, como as fábricas ocupadas, as comunas populares e o controle social das forças armadas, andam lado a lado com elementos do capitalismo. Lá, a propriedade privada dos meios de produção ainda é a regra e a economia venezuelana continua muito dependente da sua relação com outros países imperialistas, principalmente Rússia e China.
Dito isso, é importante lembrar brevemente da trajetória da Venezuela desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999.
A luta anti-imperialista no centro da política venezuelana
Em 1998, Chávez foi eleito pela primeira vez presidente da Venezuela. Sua eleição abriu portas para transformações profundas no país. Até aquele momento, a principal riqueza venezuelana, o petróleo, estava sob controle de multinacionais e da elite burguesa e branca do país (assim como o Brasil, a Venezuela conta com uma grande proporção de pessoas indígenas e negras).
Esta elite se utilizava do controle do petróleo para enriquecer cada vez mais, ao passo que garantia seu poder político através de uma associação com os EUA. Enquanto eles estavam no poder, o povo vivia num cenário de miséria e falta de acesso aos serviços mais básicos.
O primeiro governo de Hugo Chávez foi caracterizado por mudar essa estrutura. Em 1999, ele convocou uma Assembleia Constituinte que criou uma nova Constituição e mudou o sistema político venezuelano. O petróleo e outros recursos estratégicos foram nacionalizados e abriu-se caminho para que espaços de poder popular surgissem na Venezuela. Ao mesmo tempo, porém, a nova Carta Magna mantinha a economia venezuelana nos marcos do capitalismo.
Uma mudança importante que Chávez implementou foi promover uma formação política anti-imperialista nas forças armadas. Essa consciência política soberana dos militares é, até hoje, um dos fatos que faz com que a Venezuela não retroceda ao regime anterior a 1999. Ao tirar os militares das negociatas e dos acordos com o imperialismo estadunidense, ele garantiu a permanência no poder do projeto bolivariano.
Mesmo assim, o imperialismo nunca desistiu de retomar a Venezuela. Em 2002, enquanto ainda estava no início essa transformação do país, membros corrompidos do alto comando dos militares, junto com o golpista Pedro Carmona, liderança dos grandes empresários venezuelanos, sequestraram Chávez e tentaram tomar o poder (esse episódio é retratado no documentário “A Revolução Não Será Televisionada”, disponível no YouTube). No entanto, o povo organizado nos círculos bolivarianos, em aliança com militares de baixa e média patente, conseguiu impedir o golpe.
Todo esse processo reafirmou que, para que um governo de esquerda prosperasse na Venezuela, a luta anti-imperialista seria central. Por isso, nos anos seguintes, Chávez aproximou seu país de governos de esquerda da América Latina, especialmente de Cuba, e também de movimentos sociais de todas as partes do mundo. Dos movimentos de libertação da Palestina, até o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no Brasil, o governo chavista sempre buscou na solidariedade internacional o caminho para sua manutenção.
Dentro da própria Venezuela, os sindicatos e movimentos sociais foram fortalecidos. Não à toa que se desenvolve até hoje este movimento de ocupação de fábricas abandonadas pelas multinacionais imperialistas.
A resposta do imperialismo
Tudo isso, aliado a um aumento expressivo da produção e da venda de petróleo, fez com que a Venezuela bolivariana conseguisse criar amplos planos de distribuição de renda. Entre 2011 e 2017, durante o último governo de Chávez e o primeiro mandato de Maduro, o governo bolivariano construiu mais de 1,7 milhão de casas utilizando recursos dos lucros do petróleo no programa “Gran Misiones Viviendas”.
No final da primeira década deste século, a pobreza já havia caído vertiginosamente. A crise financeira capitalista, no entanto, abriu uma nova janela de oportunidade para mais um ataque do imperialismo à Venezuela.
A queda no preço do petróleo, depois da crise de 2008, derrubou os lucros da estatal PDVSA. Com o petróleo barato no mercado, o então presidente estadunidense Barack Obama viu uma janela de oportunidade para iniciar um bloqueio econômico contra o povo venezuelano. As primeiras sanções começaram em março de 2015.
Naquele ano, a Venezuela se recuperava do primeiro grande movimento golpista desde 2002. Em 2014, Maria Corina Machado (que hoje lidera o movimento para dar um golpe de estado na Venezuela após as eleições de 28 de julho), Leopoldo López e outros líderes de extrema-direita iniciaram uma jornada de manifestações para derrubar o governo.
Desde então, esses e outros agentes financiados pelos EUA vêm tentando, quase todos os anos, realizar movimentos para derrubar Maduro. Foram eles que estiveram à frente das intentonas golpistas de 2017 e 2019, esta última chegando a criar a figura de um “presidente interino”. Todos esses movimentos sempre contaram com forte apoio dos Estados Unidos e da União Europeia.
Os erros de Maduro
Por 10 anos, portanto, o povo venezuelano vem resistindo a várias investidas estrangeiras e a um bloqueio econômico brutal. O cenário de escassez se tornou uma regra no país neste período.
Sim, é o bloqueio econômico o principal responsável pela piora das condições de vida dos venezuelanos neste período, mas o governo Maduro também cometeu erros.
O maior deles, sem dúvida, foi não ter rompido definitivamente com o sistema capitalista. O regime político criado em 1999 abriu espaço para que elementos de caráter socialista surgissem na economia e política venezuelana, mas não indicou a superação completa do capitalismo naquele país. Aqui reside a contradição principal pela qual hoje passa o povo venezuelano.
Sim, há escassez de alimentos e de produtos básicos, embora tenha se reduzido nos últimos anos (em 2023 a economia lá cresceu 5%), a inflação é um problema e a carestia é a principal reclamação da classe trabalhadora. Mas este problema poderia ser resolvido se toda a economia estivesse sob controle dos trabalhadores.
A Venezuela é rica em recursos naturais, conta com mais de 20 milhões de habitantes e, portanto, tem capacidade de construir as condições da sua autossuficiência. Em condições menos favoráveis, Cuba conseguiu romper com as cadeias da dependência imperialista.
Maduro não enxergou, neste período, os espaços de poder popular ou a socialização de setores da economia como o caminho central para o desenvolvimento da Venezuela. Pelo contrário, na prática, o governo venezuelano vê estes processos como secundários na conjuntura política do país e aposta na conciliação com setores da burguesia venezuelana.
25 anos de bolivarianismo libertaram a Venezuela das garras do imperialismo estadunidense, mas não entregaram os meios de produção nas mãos dos trabalhadores. Tampouco foi realizado o empoderamento completo dos órgãos de poder popular, que ainda têm que disputar poder com instituições tipicamente burguesas, como a Assembleia Nacional e o Tribunal Constitucional.
Estas limitações estão na origem dos problemas da Venezuela. Maduro, até agora, não mostrou disposição em resolver este problema. Pelo contrário, sua aposta é inserir a Venezuela no bloco imperialista de oposição aos EUA, liderado pela China e Rússia, como uma forma de fazer contraponto ao bloqueio econômico. Nesse período, a dependência econômica da China se ampliou na Venezuela, e no campo militar o país é hoje armado apenas pela Rússia.
Qual o significado de uma queda de Maduro?
Não podemos, no entanto, considerar que estes erros cometidos pelo governo Maduro indique que a oposição fascista seja uma opção melhor para o povo venezuelano.
A Venezuela ainda não conta com uma força política revolucionária marxista-leninista com influência suficiente para disputar o poder. A disputa se dá entre os setores reacionários dos golpes de 2002, 2014, 2017 e 2019 e o campo bolivariano, que não conseguiu passar das reformas mais ou menos radicais, mas dentro dos marcos do capitalismo.
No curto prazo, portanto, não faz sentido colocar água no moinho do fascismo internacional e falar da suposta fraude que a mídia burguesa “denuncia” mundialmente. É fundamental reconhecer que as posições políticas não são definidas apenas com base em ideias puras, mas levando em conta a realidade material dos fatos e das consequências que eles geram. Sendo assim, qual seria a consequência imediata se o governo Maduro caísse e o imperialismo alcançasse seus objetivos na Venezuela? O que isso significa para Brasil, Cuba, Bolívia e para toda a América Latina? Esta é a questão central da conjuntura da América do Sul hoje.
A queda de Maduro significa a derrota de todos os setores populares, de esquerda e revolucionários na Venezuela, e para entrar o quê no lugar? A direita fascista?
Portanto, se deixar levar pelo discurso burguês e pró-imperialista da suposta “fraude” nas eleições venezuelanas significa trair todos estes anos de luta. Não se trata aqui de minimizar ou esquecer os erros de Maduro e do PSUV, mas de apoiar uma luta construída por milhões de pessoas que estão na linha de frente do enfrentamento ao imperialismo há tantos anos.
Nessas ocasiões, vale sempre lembrar as palavras de Malcolm X: “Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”.
A verdade é que a mídia burguesa não tem moral para falar em fraude eleitoral, dado que, nas democracias burguesas, as forças revolucionárias ou são impedidas de concorrer nas eleições ou concorrem em condições extremamente desiguais.
Dá para dizer que o sistema eleitoral venezuelano é menos democrático que o do Brasil, em que vemos políticos milionários comprando votos, roubando dinheiro público e perseguindo opositores? Estamos em ano de eleições municipais, em qual cidade deste país a esquerda revolucionária pode ir tranquilamente sem sofrer ameaças?
Qual o caminho, então?
Antes de tudo, no curto prazo, o povo venezuelano precisa da nossa solidariedade contra o movimento golpista em curso. Essa solidariedade precisa acontecer pressionando o governo do Brasil a não compactuar com essa investida imperialista. O presidente Lula ainda mantém uma posição em cima do muro e não reconheceu os resultados das eleições.
Também é preciso acreditar na força e na capacidade da classe trabalhadora venezuelana em se organizar para lutar e superar esses problemas. A defesa neste momento não é de Nicolás Maduro, mas do projeto político iniciado em 1999.
Já no longo prazo, é preciso ter a compreensão que apenas com uma transformação revolucionária da Venezuela o povo de lá poderá superar definitivamente estas dificuldades. Isto significa passar do projeto do “socialismo do século XXI” a um projeto revolucionário socialista de verdade.
Neste ponto, há diversos camaradas que estão na linha de frente desta luta na Venezuela, como apresentamos nas entrevistas publicadas em nosso jornal. Nosso papel é divulgar e apoiar sua luta.
Só o socialismo pode resolver os problemas dos venezuelanos. A burguesia capitalista só trará mais miséria, fome, repressão e dependência econômica.