Edival Nunes Cajá*
Rinaldo Cardoso Ferreira era recifense, nasceu numa família proletária no dia 24 de maio de 1935. Enquanto seu pai dirigia caminhões de entrega da empresa Souza Cruz, por longas décadas, sua mãe dedicava-se ao penoso e invisível trabalho de cuidar da casa e da família. Casou-se, em 1958, com Maria do Monte Sinai Caraciolo Ferreira. Dessa união, nasceram Liliane, Rinaldo Luiz e Lígia. Em 1991, realizou seu segundo casamento, com Carol (Maria Carolina Bezerra Cavalcanti).
Formou-se em História (1965) e Economista (1971), ambas na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), retornando à instituição como professor de Economia, já em 1972, um professor com Concepção Marxista da História. Antes de se consagrar como professor universitário, também trabalhou no Banco Nacional do Norte (Banorte), na Texaco, no Banco do Brasil e lecionou História em colégios do Recife. Rinaldo concluiu seu mestrado, em 1986, na UFPB, com uma primorosa dissertação “O Movimento de Cultura Popular de Recife – MCP – expressão educacional de uma proposta política de mudanças”. Ele queria compreender a efervescente situação político-cultural na qual vivera a sua juventude, aqueles agitados e esperançosos anos que antecederam o golpe militar fascista de 1º de abril de 1964. Ele tinha uma verdadeira paixão por aquele ambiente propício para o despertar de novas consciências, marcado pelas ações dos governos municipais progressistas de Pelópidas Silveira (1955-1959) e de Miguel Arraes (1960-1963), também este no Governo do Estado (31/01/63 a 02/04/1964), promovendo o Movimento de Cultura Popular (MCP), o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Ateliê Coletivo, com aulas regulares, incentivando as artes plásticas, a literatura, a música, a dança, o Cinema Novo.
Para isso, foram construídos cineteatros no Centro da cidade e nos maiores bairros, sempre lotados com exibições, espetáculos, assembleias populares, ou congressos, festivais e encontros locais e regionais. Era comum Rinaldo se emocionar ao demonstrar a ideologia revolucionária dos comunistas. Numa roda de conversa sobre o comunismo científico e seus fundadores, Karl Marx e Friedrich Engels, no Centro Cultural Manoel Lisboa, há 30 anos, aproximadamente, Rinaldo nos falou, com um orgulho danado, de ter se tornado comunista de forma natural. Como, assim, companheiro? Ele respondeu: “Ora, em Recife, no início dos anos 60, foi grande o impacto da Revolução Cubana de 1º de janeiro de 1959. A gigantesca desigualdade social reinante em Pernambuco e muitos livros publicados, a preço popular, objetivando despertar a consciência política dos jovens, dos trabalhadores, sobre a realidade social na qual se vivia, como as coleções Romances do Povo e Cadernos do Povo, tendo alguns destes chegado a vender cerca de um milhão de exemplares. Tudo isso tornava o socialismo e o comunismo algo próximo de nós.”
Rinaldo foi se fazendo militante: “Ler A Concepção Materialista da História, de George Plekhanov e a Contribuição à Crítica da Economia Política, de Marx, logo ao chegar à universidade, significou uma redescoberta do mundo, da sociedade e da possibilidade de transformá-la”. A sua longeva amizade com a direção do PCR e com o professor Waldomiro Cavalcanti (Unicap e UFPB), o levou a estudar praticamente toda a obra de Marx, especialmente O Capital. A sua consciência passou a exigir coerência entre teoria e prática. Como transformar a sociedade capitalista em sociedade socialista sem a organização e a militância da classe trabalhadora, sem sua vinculação orgânica com a teoria e o movimento comunista?
Estas grandes indagações o levaram a envolver-se na luta concreta contra a ditadura militar e pelo socialismo. Assim, procurou cuidadosamente aliar sua atividade profissional de professor universitário com a realização de tarefas da resistência armada clandestina à ditadura. Dois exemplos concretos, relatados a seguir, são suficientes para comprovar o tamanho do seu compromisso e de sua capacidade. Ele tinha plena consciência do risco que corria, seja pela ameaça de um flagrante da Polícia do Exército (PE), seja pela possibilidade de uma delação arrancada nas câmeras de torturas, no que pese sua grande confiança na formação ideológica dos militantes e na política de segurança do Partido, no caso de prisão.
Manoel Lisboa de Moura (o companheiro Celso), fundador do PCR e seu principal organizador, seguia militando na clandestinidade, em Recife, entretanto, precisava ir a uma reunião rigorosamente clandestina do Partido em Maceió. O Partido sondou Rinaldo sobre a possibilidade de transportá-lo, examinou os riscos desta viagem interestadual, e ele prontamente se colocou à disposição para levá-lo em seu carro, tendo como cobertura sua própria família – seu irmão Cézar Romero, no volante, e sua esposa, Maria Monte Sinai. A esta altura, 1970, Manoel era um dos homens mais procurado pelo DOI-CODI, o mais violento órgão da repressão política da ditadura militar. A missão foi cumprida exitosamente. Saíram à noite e, na madrugada seguinte, sua família estava de volta ao Recife, sã, salva, e transbordando felicidade.
Valmir Costa (o companheiro Nivaldo), também fundador do Partido e principal dirigente do nosso trabalho no movimento estudantil, cassado em 1969, procurado pela repressão como se procura uma agulha no palheiro, ingressa na luta clandestina como organizador profissional do Partido. Nesta condição, torna-se obrigatório pelas normas de segurança do Partido, a mudança de “aparelho” de tempos em tempos, como forma de driblar a polícia fascista. Na impossibilidade de um novo aparelho, no prazo estabelecido, o companheiro Nivaldo recebeu abrigo seguro na casa de Rinaldo e Sinai, ao lado das três crianças do casal, por longos seis meses, com direito a uma visita semanal do camarada Celso, e uma saída por semana para dar assistência ao coletivo da juventude do Partido, quando, finalmente, foi localizado e alugado um “aparelho” seguro.
A ditadura militar sequestrou Manoel Lisboa no dia 16 de agosto de 1973, na praça Yan Fleming, no bairro do Rosarinho, em Recife, e seguiu torturando-o até sua morte, no dia 04 de setembro, na sede do 4º Exército, na Praça 13 de Maio, sem arrancar uma única informação sua. Valmir Costa foi sequestrado do apartamento onde morava, na Estrada do Arraial, no dia 04 de abril de 1978. Dois duros golpes da repressão, duas árduas experiências de resistência à ditadura.
O companheiro Rinaldo, apesar da proximidade do perigo, posto que estes dois companheiros sequestrados e torturados anteriormente frequentavam sua residência e eram testemunhas da sua contribuição regular e de seu apoio logístico à organização, Rinaldo e sua família não sofreram qualquer indiciamento pela polícia política da ditadura. Os algozes queriam saber onde moravam e com quem conviveram, mas os dois absolutamente nada informaram, apesar das torturas.
Rinaldo avança em seu trabalho como docente e se torna professor titular de Economia da Faculdade de Ciências da Administração de Pernambuco (FCAP), a partir de 1º de abril de 1978, chegando a ser chefe do Departamento de Ciências Econômicas e Administração.
Nessa instituição, Rinaldo tomou consciência da necessidade de se transformar num sindicalista classista, com o objetivo de sensibilizar os colegas professores da necessidade histórica de se fundar o sindicato da categoria para lutar por melhores condições de trabalho da categoria e de toda a classe trabalhadora do Brasil.
Fez um trabalho de vanguarda, obtendo como resultado a construção do sindicato dos docentes após várias assembleias, com a ativa participação de um núcleo mais consciente e organizado até conseguir fundar a Associação dos Docentes da Fesp (Adufesp), em 20 de março de 1990. Assim, não foi surpresa a categoria elegê-lo, por unanimidade, como o primeiro presidente do sindicato.
Em decorrência de sua militância política na luta contra a ditadura, Rinaldo foi convidado para exercer vários cargos de confiança, com funções executivas na administração pública, como diretor comercial e financeiro da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), empresa estatal, no segundo governo de Miguel Arraes, na volta do exílio, em 1986. Também assumiu a função de diretor financeiro na Empresa de Urbanização do Recife (URB). Foi Secretário de Administração da Prefeitura de Olinda, na gestão de Germano Coelho. Rinaldo foi ainda coordenador do Instituto General Abreu e Lima de Amizade Pernambuco- Venezuela, instituído por Coromoto Godoy, cônsul-geral da Venezuela em Pernambuco, em 2010.
Rinaldo torna-se também um ativo participante da solidariedade militante com a revolução socialista em Cuba e participa da luta contra o criminoso bloqueio imperialista dos EUA. Torna-se diretor do Centro Cultural Manoel Lisboa e um entusiasta dos cursos de iniciação à teoria marxista do CCML, nos anos 1980, 1990 e 2000. Os cursos ocorreram em dezenas de sindicatos, faculdades e colégios por meio das lideranças das entidades estudantis. Ele coordenou, com maestria, o curso de leitura de O Capital. Enfim, contribuiu enormemente com o trabalho de formação política de novas gerações de militantes e quadros revolucionários marxistas em quase toda a região Nordeste. Presidiu o Seminário do centenário de Gregório Bezerra, no dia 13 de março de 2000, por quem tinha uma grande admiração política.
Rinaldo faleceu no dia 24 de junho deste ano.
Estas linhas representam um tributo à memória do companheiro Rinaldo. Com elas, pensando na publicação de um livreto, pelas Edições Manoel Lisboa, iniciaremos a coleta de testemunhos por escrito de amigos, colegas de magistério e ex-alunos que queiram contribuir com a construção da memória histórica deste combatente da luta pela derrubada da ditadura, pela conquista da Anistia, pela punição dos torturadores e golpistas de 1964, pela liberdade e pelo socialismo.
Companheiro Rinaldo! Presente, agora e sempre!
*Edival Nunes Cajá foi membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, quando presidida por Dom Helder Câmara. Foi preso político, é sociólogo, presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa, coordenador do Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia (CMVJRD-PE) e membro do CC do PCR.