No Brasil, a escravidão negra foi decisiva para a formação do capitalismo e a continuidade desse sistema de exploração depende do racismo. Por isso, a luta coletiva e organizada do povo negro por sua emancipação é uma luta revolucionária
Kleber Santos e Bento Xavier*
Através da cultura popular, o povo negro tem transmitido a sua história passada e sua realidade presente para o conjunto da população. Ela tem sido um meio para expor a realidade que o povo negro vive, mas também uma forma de enfrentar a história contada pelos meios da classe dominante. O grupo paulista de rap Racionais MCs é um dos principais exemplos dessa forma de expressão.
Na música “A Vida É Desafio”, o vocalista Mano Brown começa uma de suas interpretações com a seguinte fala: “Desde cedo, nossas mães falam assim: ‘Filho, por você ser preto, tem que ser 2 vezes melhor’. Aí eu pensei: ‘Como ser 2 vezes melhor se você tá pelo menos 100 vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses, por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?’”.
A realidade dos negros é cruel. Foram quase 400 anos de escravidão no Brasil, sendo ele o último país das Américas a fazer a abolição da escravatura. E pior: por ter mantido a estrutura de desigualdade entre as raças, ela ficou conhecida como “falsa abolição”.
Com a invasão colonial ao nosso país, a busca desenfreada de Portugal por novos territórios para saquear as riquezas e manter a abundância da nobreza levou à implementação de um dos regimes escravistas mais violentos e opressores do continente.
Como os povos originários não se submeteram ao trabalho forçado que os portugueses queriam impôr, a tentativa de dominação desses povos e o roubo de seus territórios provocou a morte de mais de 2 milhões e 500 mil indígenas. Decidida a explorar essa terra abundante, a Coroa Portuguesa sequestrou da África mais de 5 milhões de negros e negras, submetendo-os a todo tipo de humilhação, açoite e perversidade. Muitos morreram de doenças, maus tratos e torturas nos navios negreiros que os traziam de outro continente.
Escravismo foi base do desenvolvimento do capitalismo no Brasil
O escravismo foi essencial para o surgimento e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com a passagem dos meios de produção das mãos do senhor de escravos para a burguesia. Em alguns casos, senhores de escravos e burgueses eram até mesmo representantes das mesmas famílias, que mudaram sua relação de trabalho com a mão de obra utilizada.
No escravismo, nós, negras e negros, éramos tratados como coisas, sem nenhum direito à saúde, moradia, educação, trabalho digno, lazer e cultura. Hoje, vivendo em um dos países mais desiguais do mundo, ainda temos muitas barreiras que impedem uma vida digna.
Somos a décima maior economia do mundo, o terceiro maior produtor de grãos, o maior produtor de frango e o sétimo país com mais bilionários. Por outro lado, também somos o décimo quarto país mais desigual, com 64,2 milhões que passam fome, temos a quarta maior taxa de desemprego e mais de 11 milhões de pessoas não sabem ler nem escrever. Nessa contradição, 1% dos ricos concentram mais da metade da riqueza.
São muitas as contradições provocadas pelo capitalismo e nós, população negra, somos a parcela mais atingida: 70% dos que passam fome, 71% dos desempregados, 90% dos assassinados pela polícia. Entre os analfabetos, há duas vezes mais negros que brancos.
Como se garante a justiça social em um sistema social, político e econômico como esse? A grande burguesia e a elite branca descendente de europeus, privilegiadas com essas mazelas sociais, defendem que isso é possível. Para isso, mobilizam as ideias da extrema-direita e do fascismo.
O capitalismo depende do racismo
Pretos e pardos, apesar de sermos mais de 55% da população do Brasil e estarmos no centro da exploração, vivem às margens da estrutura social. As instituições como o Parlamento, o Poder Executivo, o Poder Judiciário, os partidos (nesse caso, com a honrosa exceção da Unidade Popular, a UP), os meios de comunicação, todos são majoritariamente compostos e controlados por brancos burgueses.
Apesar de tantas barbaridades e crimes provocados pelos ricos contra nós, a nossa história é baseada também em várias revoltas e rebeliões organizados por revolucionários como Dandara e Zumbi dos Palmares. A coragem e altivez do nosso povo são refletidas nas lutas do Quilombo dos Palmares, da Conjuração Baiana, da Revolta dos Malês, da Balaiada, da Revolta da Chibata e da Revolta de Queimado.
No Brasil, nem sempre os negros tiveram o direito ao voto, ou seja, o reconhecimento do Estado do nosso direito político no meio institucional. Mesmo assim, o desprezo que as classes dominantes do país tem pelo povo e a necessidade de empregar a violência para impor tamanha exploração, fizeram com que vivêssemos longos períodos de ditadura que invalidaram esse direito ao voto. A militarização dos espaços políticos e educativos representa maior risco à nós, negros e negras, que somos as principais vítimas da violência de Estado. É preciso ampliar as lutas para acabar com a exploração e o racismo.
Temos que combater a ideologia individualista que nos cerca e propagandeia que “a favela venceu” pelo enriquecimento financeiro de alguns, enquanto a realidade de exploração se mantém. Devemos seguir os exemplos históricos de luta coletiva e organizada do nosso povo, fortalecendo e impulsionando a luta de classes para quebrar as correntes que nos oprimem. Só isso será, de fato, a vitória do povo negro e trabalhador.
*Kleber Santos é coordenador nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e militante da Unidade Popular. Bento Xavier é militante da Unidade Popular.