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quinta-feira, 2 de maio de 2024

O papel da escravidão na luta de classes no Brasil de hoje

Entender como se deu a organização e a estrutura da escravidão no Brasil é fundamental para pensarmos a situação da classe trabalhadora hoje.

Felipe Annunziata | Redação


HISTÓRIA – É muito comum aprendermos na escola que o nosso país só passou a ter operários após o fim oficial da escravidão, em 13 de maio de 1888. Também é normal ouvirmos que a escravidão influenciou muito pouco a formação da classe operária, dos sindicatos e das lutas pelos direitos trabalhistas.

Este apagamento foi intencional. Por 135 anos, a burguesia brasileira forjou um vasto aparato ideológico para esconder da classe trabalhadora sua própria história. Isto não é trivial. Foram novelas, filmes, livros, colunas de jornal e toda sorte de propaganda para nos convencer disso.

Se um povo não aprende sobre seu passado ou aprende uma versão mentirosa do passado, ele tem mais dificuldade de pensar sobre seu presente. Afinal, se a escravidão é um evento “tão distante no passado”, não precisamos pensar sobre as consequências dela para o trabalho no Brasil hoje.

Ainda mais apagado na história do que as lutas contra a escravidão é também o papel que ela exerceu na constituição da nossa classe operária e da luta de classes no país. E o Brasil tem uma especificidade muito grande neste tema.

Ao contrário dos EUA, do Caribe e dos demais países da América Latina, nosso país teve características próprias no sistema escravocrata que influenciam até hoje a consciência dos trabalhadores. 

Um exemplo pouco conhecido é o dos chamados “escravizados ao ganho”, ou ganhadores. Estas eram pessoas escravizadas que já exerciam o trabalho assalariado ou comercializavam bens nas grandes cidades. Alguns vendiam sua força de trabalho e davam parte do seu pagamento ao seu dono. Esta foi uma das formas de escravidão urbana mais comuns no país. 

O papel dessa população era garantir os serviços básicos da cidade, como a coleta de água, esgoto, transporte de mercadorias e pessoas e o serviço doméstico. Havia também escravizados que vendiam todo tipo de utensílios domésticos de produção artesanal própria ou mesmo comida, numa estrutura muito parecida com a dos camelôs atuais.

No Rio de Janeiro, sede do Império, havia, segundo o censo de 1872, 278 mil habitantes. Destes, 48 mil eram pessoas escravizadas. Grande parte destes eram os chamados ganhadores. Havia casos de que mesmo uma pessoa escravizada de forma “tradicional” também saía às ruas para vender sua força de trabalho a mando do senhor.

Em Salvador, no mesmo ano de 1872, viviam 108 mil pessoas, das quais ao menos 12 mil eram escravizadas. Nessa, que era então a segunda maior cidade do país, os escravizados e negros livres eram os reponsáveis por todo o sistema de transporte coletivo. Segundo o alemão Robert Avé-Lallemant, que esteve na cidade em 1867, “tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega, é negro”.

Ganhadeiras na Bahia, durante a escravidão era comum os escravizados trabalharem nas ruas vendendo alimentos, eles eram obrigados a dar parte lucro aos seus senhores. Foto: The New York Library

Greves e solidariedade: as formas de luta dos ganhadores

A escravidão ao ganho era vista como uma saída destas pessoas da situação de trabalho compulsório. Ao mesmo tempo, o fato delas terem um pagamento ou poderem ficar com parte do dinheiro que conseguiam com o comércio abria novas possibilidades.

Com a chance de poder acumular algum recurso financeiro, muitas pessoas escravizadas começaram a formar irmandades e associações mutuais de forma legal e, em muitos casos, ilegal e clandestinamente. Nestas irmandades e associações, os escravizados juntavam seus recursos para se apoiarem e, após conquistarem a própria liberdade, poderem também libertar outras pessoas.

A formação destas entidades também é fruto de outro processo. Dado o caráter social do trabalho destas pessoas, era comum se organizarem contra todo tipo de medidas que pudessem piorar suas condições de trabalho.

Em 1º de junho de 1857, em Salvador, os ganhadores que faziam o transporte de mercadorias e de pessoas na cidade resolveram fazer uma greve. Isto porque o poder municipal decidiu que eles deveriam se registrar e passar a pagar imposto pelo trabalho que realizavam. A humilhação se completou depois que o governo tentou impor, a mando dos donos de engenho, a colocação de uma placa de metal em cada ganhador para identificá-los. 

Aqui é importante lembrar que não existia sistema de transporte público e o caráter reacionário da escravidão no Brasil dificultava até mesmo a utilização de meios de transporte mais modernos na época, como carroças. Na prática, pessoas e mercadorias eram carregadas nas costas dos tais ganhadores, homens livres e escravizados, negros que viviam pelo pagamento de cada serviço ou encomenda.

Diante da situação, Salvador parou, da mesma forma como as cidades hoje param quando os motoristas de ônibus e os metroviários fazem greve.

A notícia da greve foi dada assim pelo Jornal da Bahia, no dia 2 de junho de 1857:

“Ontem esteve a cidade deserta de ganhadores e carregadores de cadeiras. Não se achava quem se prestasse a conduzir objeto algum. Da alfândega nenhum objeto saiu, a não ser objeto muito portátil, ou que fosse tirado por escravos da pessoa interessada. Os pretos ocultaram-se; e se os senhores não intervierem nisso, ordenando-lhes que obedeçam a Lei, o mal continuará, porque, segundo ouvimos, eles estão nessa disposição.” 

Durante a greve, como não iriam receber nada, os ganhadores receberam o apoio material das ganhadeiras ou quituteiras, que deram parte de sua mercadoria para ajudar os escravizados a se manter na luta. Toda esta história, em detalhes, pode ser conhecida no livro do historiador João José Reis, “A Greve Negra na Bahia”.

Estes exemplos de luta mostram uma característica muito própria da escravidão em nosso país. Aqui, a luta contra a escravidão e o modelo reacionário imposto pela aristocracia colonial e imperial forçou a instituição de modelos de exploração escravista nas cidades que atendessem aos privilégios das elites brancas.

Essa estrutura também forçou os escravizados a apelarem para qualquer forma de buscar se libertarem. Ao combinar ações legais e ilegais, com greves ou apenas comprando a liberdade própria e de outros companheiros, os ganhadores também criaram novas relações entre si, se organizaram.

Foi essa experiência de luta que possibilitou a formação das entidades sindicais logo após o golpe que instituiu a República, em 1889. Exemplo mais clássico é o do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro, fundado em 1903. 

Diante disso, fica a questão: como a burguesia brasileira iria deixar que o povo mantivesse essa memória de luta? 

O apagamento da história na formação da burguesia brasileira

A classe dominante brasileira tentou sempre apagar qualquer vestígio de resistência na memória da luta de classes no Brasil. Após a proclamação da República, sem a escravidão, o governo e as oligarquias ampliaram um plano já iniciado ainda no Império: a imigração. 

O Estado financiou e estimulou a imigração europeia. Italianos, portugueses, espanhóis e outros europeus passaram a disputar o mercado de trabalho dos ex-escravizados. Ao mesmo tempo, as oligarquias e a burguesia fizeram de tudo para buscar anular a memória de luta do povo negro antes da Abolição. 

Entre 1890 e 1930, a linha política da mídia das elites era dizer que o trabalhador brasileiro (negro) era preguiçoso e incompetente. Muitos jornais operários estrangeiros, inclusive, embarcaram nessa ideologia (usada para dividir a classe operária através do racismo) e falavam que faltava consciência de classe ao operariado brasileiro, pois ele era formado por negros ex-escravizados ou filhos de escravizados. 

As histórias das revoltas e greves de antes da Abolição foram pouco a pouco sendo esquecidas. Os livros de história já não falavam mais e as lideranças operárias que viveram o período abolicionista foram morrendo. 

Somente 50 anos mais tarde, já depois da Ditadura Militar Fascista, houve algum esforço dos historiadores em recuperar este passado. Em grande parte, como consequência das vitórias do movimento negro na redemocratização e da ascensão das greves operárias da década de 1970. 

Mas tanto tempo de apagamento gerou consequências. Hoje, a ideologia dominante diz que a classe trabalhadora atual não tem nada a ver com os escravizados de antes. Quando ela admite essa relação é sempre com o viés racista e antipopular, excluindo qualquer influência das lutas do passado na formação da nossa classe.

Mas a burguesia não esquece a própria história. Ela sempre tenta voltar com estas formas de exploração comuns no século 19, ainda que com outra roupagem. 

No século 19 não havia como esconder do escravizado sua situação no sistema. Agora, a burguesia tenta esconder do povo esse passado dizendo que o que ocorre hoje com a classe trabalhadora são “novidades”, “modernidades”. Nada mais cínico.

Qual a diferença entre este ganhador que fez greve na Salvador de 1857 e os entregadores de hoje, a não ser a ausência da relação formal de escravidão? A mentira de que hoje, com a Reforma Trabalhista, os aplicativos e a terceirização, temos mais liberdade e chances de sermos nossos próprios patrões é parte da mesma tradição ideológica que dizia que os escravizados deviam ser explorados pela vontade divina ou por uma condição natural.

A verdade é que a classe operária brasileira é filha direta das lutas dos povos escravizados no nosso país por 380 anos. Em cada greve, em cada luta ou reivindicação não podemos nunca esquecer disto.

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