Assessor da Comissão Pastoral da Terra, frei Gilvander Moreira denuncia a tentativa do Estado de despejar a Ocupação Eliana Silva, organizada pelo MLB em Belo Horizonte (MG). 400 famílias estão consolidadas no terreno há 12 anos, mas mesmo assim o poder público quer despejá-las
Frei Gilvander Comissão Pastoral da Terra
Ficamos estarrecidos ao recebermos a confirmação de que uma juíza de uma Vara Pública Municipal de Belo Horizonte (MG) havia exarado decisão para despejar mais de 400 famílias da Ocupação-Comunidade Eliana Silva, coordenada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) na região do Barreiro, na capital mineira. Trata-se de absurdo dos absurdos, uma das decisões mais brutais que já vi em 30 anos lutando ao lado dos camponeses/as por terra e ao lado dos sem-teto por moradia digna e adequada. Eliana Silva, como carinhosamente é conhecida a comunidade, tem sido há 12 anos um extraordinário exemplo de organização e de conquista de direitos para todas as Ocupações do Brasil e de outros países. Intuo que se a juíza for visitar Eliana Silva ou pelo menos assistir alguns dos vídeos que gravamos lá dia 7 de dezembro último, na hora ela voltará atrás e cancelará a decisão de despejo. Só se ela não tiver coração.
A Ocupação Eliana Silva é uma Ccmunidade com 12 anos de luta e com inúmeras conquistas que já a transformou em um bairro consolidado muito mais organizado do que centenas de bairros da capital mineira. Seguindo Plano Urbanístico feito por professoras/es doutores em Arquitetura da UFMG em conjunto com as famílias, Eliana Silva já tem todas suas ruas asfaltadas, todas as casas construídas de alvenaria, sendo a maioria das casas de 2 ou 3 andares, com rede de água e esgoto instalada pela COPASA, rede de energia instalada pela CEMIG, coleta de lixo feita por caminhões da prefeitura de Belo Horizonte e conta com a Creche Tia Carminha, que atende há 12 anos mais de 30 crianças, viabilizando que as mães possam ir trabalhar e deixar as crianças sendo bem cuidadas. Tem também Centro Cultural da Quebrada. Ou seja, Eliana Silva está no nível da Vila Santa Rita, ao lado. Quem desconhece a história não percebe que Eliana Silva foi fruto de ocupação, tamanha a evolução da comunidade.
Qualquer pessoa sensata ou autoridade que chegar lá e ver dirá na hora: “É impossível despejar mais de 1300 pessoas de um bairro consolidado como Eliana Silva.” Para além do grau de consolidação que impede despejo e reintegração de posse, a decisão que manda despejar está eivada de ilegalidades e é inconstitucional sob muitos aspectos legais e éticos.
Processos questionáveis
Três processos de reintegração ainda existem como uma espada de Dâmocles na cabeça das mais de 400 famílias da Comunidade Eliana Silva: um do empresário Fernando Rehfeld, outro do Newton Pedrosa, dono de um ferro velho, e outro da Prefeitura de Belo Horizonte. Estão em duas Varas diferentes. Precisam ser reunidos com o juízo prevento, o que recebeu o primeiro processo. Não sei se o primeiro processo protocolado fisicamente ou o primeiro no sistema eletrônico, que são diferentes. Tem que decidir isto também, reunir os processos para que não se tenham decisões discrepantes.
Há seis Ações Civis Públicas (ACPs) da Defensoria Pública de Minas Gerais e do Ministério Público de Minas Gerais, ações estranhamente não julgadas até hoje, ações que colocam como réus a Prefeitura de Belo Horizonte, o Estado de Minas Gerais, Bradesco e empresários. Todas defendem o direito das famílias de continuarem ocupando as áreas ocupadas e exigem a anulação dos contratos de alienação de terras públicas (devolutas) até a década de 1990, mas que foram repassadas para empresários pelo Governo de Minas Gerais, através da empresa CIA de Distritos Industriais de Minas Gerais (CDI/MG) e posteriormente CODEMIG, de forma ilegal, sem licitação e a preço irrisório, com cláusula contratual que previa que os empresários teriam que em 12 ou 24 meses, de acordo com cada contrato de venda dos terrenos, comprovar que estavam gerando emprego no aludido Distrito Industrial do Vale do Jatobá. Com a cumplicidade do Governo de Minas Gerais, Marcos Valério, Banco Real, Bradesco e muitos empresários se apossaram, de forma ilegal, de 1,5 milhão de metros quadrados de terra nas imediações da Comunidade Eliana Silva, mas poucas empresas prosperaram.
A maioria dos empresários deixou os terrenos abandonados sem cumprir a função social por interesses especulativos. Por isso, a região se transformou no Vale das Ocupações, com uma ocupação acontecendo após a outra: em 1996, Ocupação Corumbiara; em 2008, Ocupação Camilo Torres; em 2010, Ocupação Irmã Dorothy; em 2012, Ocupação Eliana Silva (a 1ª Ocupação Eliana Silva resistiu três semanas e foi despejada por 500 policiais militares com uso de caveirão, inclusive, mas três meses após as famílias despejadas ocuparam outro terreno a 1 km de distância. O terreno da 1ª Eliana Silva está abandonado até hoje); no carnaval de 2014, Ocupação Nelson Mandela; Em 2015, Ocupação Paulo Freire; e Ocupação da Horta. Na luta coletiva, os movimentos sociais, como o MLB, tem construído muito mais moradia do que o poder público.
As Ações Civis Públicas devem ser julgadas primeiro, pois os direitos do povo devem estar acima dos interesses dos empresários que mesmo deixando os terrenos abandonados e sendo usados para especulação, pleiteiam judicialmente a reintegração em uma posse que nunca estiveram, pois se estivessem na posse e dando função social para a propriedade, não teriam acontecido ocupações. Empresários responsáveis que construíram empresas em vários dos terrenos estão tocando seus negócios e não tiveram suas propriedades ocupadas.
Decisão desrespeita ADPF 828
A decisão que manda despejar as famílias da Ocupação Eliana Silva viola e desrespeita também a decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 828 que obrigou os tribunais estaduais e federais a criarem Comissões de Conflitos Fundiários e a encaminharem processo de negociação que impeça despejo sem alternativa prévia e digna. É preciso que a Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) faça uma Visita Técnica na Ocupação Eliana Silva e convoque a prefeitura de Belo Horizonte, o Governo de Minas Gerais e o Governo Federal para audiências de tentativas de conciliação que apontem que o correto, justo e necessário a fazer é a Prefeitura de Belo Horizonte desapropriar o terreno da Ocupação Eliana Silva e encaminhar o processo de Regularização Urbana e Fundiária Social (REURBs), expedindo ao final a escritura e Registro de posse e propriedade para as famílias que moram na Comunidade Eliana Silva há 12 anos com todas suas casas construídas já pagando contas de água e energia.
Caso a Prefeitura de Belo Horizonte se negue a fazer o que é obrigação dela, que é fazer a REURBs na Comunidade Eliana Silva, a Defensoria Pública de Minas Gerais deve entrar com Ação Civil Pública exigindo a desapropriação indireta da área, ou seja, o juiz deverá acolher o pedido e determinar que a Prefeitura e Estado de Minas Gerais pague em dinheiro certo valor para os empresários que pleiteiam reintegração de posse.
Sobre isto, já temos várias jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que proíbem despejar ocupação- omunidade consolidada, inclusive decisão do TJMG que determinou desapropriação indireta no caso da Ocupação Fidel Castro na beira do Anel Rodoviário em Belo Horizonte, o que impediu o despejo de centenas de famílias e a prefeitura de Belo Horizonte foi condenada a pagar em dinheiro o pretenso proprietário da área.
Há precedente para desapropriar terreno
Temos muitos exemplos que podemos citar de casos em que o Estado (Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo) reconheceu a comunidade e o despejo não aconteceu. Por exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado bairro em Uberaba (MG). Diante da existência de inúmeras edificações e moradores no local, após tantos anos de disputa judicial, a justiça mineira reconheceu e negou o direito à reintegração de posse em prevalência do interesse público, social e coletivo. A decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas e danos a ser paga em dinheiro.
Em voto repleto de doutrinas, teses e precedentes, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os princípios da proporcionalidade e da ponderação como forma de o Judiciário dar aos litígios solução serena e eficiente. O ministro relator ressaltou que “o imóvel originalmente reivindicado não existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a pretexto de fazer justiça.
Outro caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP, que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30 famílias na Favela do Pullman.
Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre a ‘pseudo-realidade jurídico-cartorária’. Segundo o art. 77 do Código Civil, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas – na Favela do Pullman -, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse”.
Justiça para a ocupação Eliana Silva!
Tal julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº 1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, registrou que o direito de propriedade deve ter correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de propriedade com violação aos direitos fundamentais.
Essa situação por que passa a Comunidade Eliana Silva exige atenção e solidariedade. Conclamamos a todas as pessoas de boa vontade que unam-se a nós nessa luta urgente, justa e necessária, para impedir esse despejo absurdo! Que a justiça aconteça! Que a Ocupação-Comunidade Eliana Silva resista mais uma vez! Que venha a regularização urbana e fundiária social (REURBs)!
As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Frei Gilvander: “DECISÃO DE DESPEJAR A OCUPAÇÃO-COMUNIDADE ELIANA SILVA, DO MLB, É INCONSTITUCIONAL E VIOLA A DECISÃO DO STF NA ADPF 828. A COMISSÃO DO TJMG DEVE FAZER VISITA TÉCNICA NA ELIANA SILVA E A PBH TEM O DEVER DE FAZER REURBS”, 07/12/24
https://www.youtube.com/watch?v=H9Cs8cSxIfM
2 – “ABSURDO TENTAR DESPEJAR A OCUPAÇÃO-COMUNIDADE ELIANA SILVA, DO MLB = BAIRRO CONSOLIDADO, 500 famílias com casas de até 3 andares, com Redes de água e esgoto da COPASA, e energia da CEMIG, ruas asfaltadas, Centro Cultural, Creche Tia Carminha…”, Vídeo 2 – 07/12/24
https://www.youtube.com/watch?v=J1hXRzVRmCw
3 – PALAVRAS DE FOGO na OCUPAÇÃO-COMUNIDADE ELIANA SILVA, DO MLB = BAIRRO CONSOLIDADO. DESPEJO? Vídeo 3
https://www.youtube.com/watch?v=kXUiYfAF1IQ
4 – AVÓS, MÃES, CRIANÇAS: “PELO AMOR DE DEUS, NÃO NOS DESPEJE!” OCUPAÇÃO-COMUNIDADE ELIANA SILVA/Vídeo 5
https://www.youtube.com/watch?v=oDLT3IhMHCU
5 – PBH TEM q FAZER REURBs na OCUPAÇÃO-COMUNIDADE ELIANA SILVA do MLB, BAIRRO CONSOLIDADO, BH/MG Vídeo 6