A vitoriosa luta para revogar a Lei nº 10.820/2024, imposta arbitrariamente pelo governador Hélder Barbalho (MDB), mobilizou os povos indígenas e os profissionais da educação do estado do Pará.
Guará Porã Tupinambá e Genesis Amanaci Nambikwara | Belém (PA)
Com base na violência policial e na prisão de professores e alunos, a Lei nº 10.820 foi aprovada no fechar das cortinas de 2024, a mando do governador Helder Barbalho (MDB) e do secretário de Educação Rossieli Soares. A lei retirava diversos direitos históricos, modificando o plano de carreira, a política de bonificações, as políticas do Sistema Modular de Ensino (Some) e do Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei).
Esses dois sistemas (inicialmente extinguidos na lei) são responsáveis pelo ensino em comunidades rurais, camponesas e indígenas, sendo, portanto, diretrizes nacionais. Mesmo assim, foram alvo da política de sucateamento do Governo Estadual, na intenção de avançar na precarização da educação pública para entregar as escolas à iniciativa privada. Prova disso são os contratos milionários com grupos educacionais privados, que seriam responsáveis pela implementação do ensino a distância no Pará.
Povo vai à luta
Após tomar conhecimento da nova lei, no dia 14 de janeiro de 2025, cerca de 500 indígenas do Baixo, Médio e Alto Tapajós, organizados pelo Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (Cita), além de quilombolas e outras organizações de base, ocuparam, por cerca de um mês, a sede da Secretaria de Educação do Estado. O Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Pará (Sintepp) deflagrou greve geral da educação no dia 23 de janeiro, que se massificou em mais de 80 dos 144 municípios paraenses.
O Estado, no primeiro momento, atacou a ocupação indígena, enviando a Polícia Militar para utilizar spray de pimenta, cortar a água e a energia elétrica, censurar a imprensa. Atacou também a greve, tentando perseguir lideranças sindicais, ameaçando os professores, e moveu uma ação na Justiça contra o sindicato. Não obteve o resultado que queria, pois, a cada dia, novos ocupantes e apoiadores se somaram à luta, no Brasil e no mundo.
Em propaganda governamental veiculada em 16 de janeiro, o Governo afirmava que “resgatou a autoestima dos professores”. A verdade é que Barbalho e Rossieli não se preocupam com o bem-estar dos professores e com a prestação de uma educação de qualidade aos jovens paraenses, mas sim em maquiar a realidade do ensino paraense. A maioria das escolas públicas estão sucateadas, não há concursos públicos da Secretaria de Educação desde 2018 e o quadro de professores segue insuficiente, com grande parte dos profissionais tendo que assumir cerca de 20 turmas, em média, com 40 alunos cada, em escolas sem infraestrutura.
Os povos tradicionais, desde o primeiro dia da ocupação, foram exemplo de poder popular, organizando cozinhas, acampamentos, comissões de segurança, ritualísticas e um forte canal de comunicação popular e autofinanciamento para manter a ocupação.
Alessandra Munduruku e Dadá Borari, importantes lideranças indígenas, ressaltaram durante suas falas que existem indígenas que dão aulas em escolas não-indígenas, e que não-indígenas também podem dar aulas nas escolas indígenas, portanto, a revogação da lei deve ser o horizonte para a garantia máxima dos direitos e seguridade socioeducacional do estado.
Avanços consecutivos, como reuniões com o Ministério Público Federal (MPF), representantes da Seduc, Ministério dos Povos Indígenas, procuradores, OAB, apoio de instituições da sociedade civil e movimentos sociais foram conquistando espaço social e fortalecendo a ocupação, culminando na derrubada de liminares de reintegração de posse que o Governo tentou realizar. Paralelamente, diversas formas de luta com atividades culturais ocorreram, como o Festival Revoga Já. Houve também ocupações na BR-163, no interior do Pará, que durou três semanas e paralisou atividades na rodovia.
“O governador impôs a Lei 10.820 de forma autoritária, pois o artigo 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante o direito à consulta livre, prévia e informada para as comunidades e territórios tradicionais que serão afetados por projetos assim. Não se pode ferir o nosso modo de vida. Temos uma lei que nos ampara, mas ela está sendo violada na cara dura”, afirma Milena Tupi Petuyra Tupinambá. O governo cortou 85% das verbas para a educação do campo no último período. “No Norte já se tem uma educação precária se comparado aos outros estados, e os professores também sofreram violências, por isso, nós, povos indígenas, tomamos a frente da situação. Com a educação indígena não se brinca!”, conclui ela.
Pressão conquista revogação
A revogação da Lei 10.820/2024, em 12 de fevereiro de 2025, representa uma vitória histórica para os povos indígenas e comunidades tradicionais, reafirmando a importância da mobilização social e da unidade na luta contra políticas que ameaçam os modos de vida, a educação especial indígena e seus direitos fundamentais.
Desde as primeiras horas da manhã, os povos indígenas, quilombolas, professores, jornalistas e apoiadores, juntaram-se no começo das Docas e marcharam juntos para a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), trazendo cartazes, encantarias e cânticos tradicionais que carregavam as vozes dos ancestrais e a luta pelas suas reivindicações. O espaço foi tomado por apresentações culturais, assim como o som de maracás e outras expressões artísticas, representando a riqueza das tradições dos povos originários. O clima de muito som e encantaria era um ato de resistência que dava ênfase à gravidade da pauta, evidenciando a força dos povos ali em luta em defesa do ensino presencial nas comunidades tradicionais.
Os povos acompanharam a sessão plenária da Alepa através de um telão colocado na fachada do prédio, entoando seus cantos e manifestando seu descontentamento. Em um momento de fervor, eles atravessaram e quebraram a barricada em frente à Alepa, colocando-se face a face com os policiais, até que esses foram obrigados a descerem, enquanto os povos foram subindo e se colocaram diante da porta da Alepa, em plena votação. A mensagem foi evidente: ou revoga ou entramos para mostrar nossa força.
A pressão exercida culminou na aprovação do Projeto de Lei nº 13/25, que revogou a Lei 10.820/24. A notícia foi recebida com aplausos, cânticos, rituais e danças, significando a vitória coletiva pela resistência e a união dos diversos povos envolvidos.
Inspirados na Revolta da Cabanagem (1835-1840), quando a população do Grão-Pará, constituída por indígenas, algumas pessoas pretas e brancos pobres, levantou-se contra a elite do poder imperial, por meio da luta por melhores condições de vida e autonomia política. A Cabanagem não foi apenas uma revolta contra a opressão do Estado, mas uma tentativa concreta de reorganização do poder político. A luta histórica inspira os combates de hoje, inclusive as lutas contra as políticas neoliberais e neocoloniais ainda presentes na região amazônica.
Matéria publicada na edição impressa nº 308 do jornal A Verdade