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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Os Doutores da Ditadura

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Manifestação no RJ na época da ditadura.
Durante a ditadura militar sobrava repressão para nosso povo e nem direito a saúde existia. (Manifestação no RJ em 1968. Arquivo Público- reprodução)

 

 

O filme “Ainda estou aqui” trouxe de volta o debate do quanto a ditadura militar brasileira montou todo um aparato para se manter no poder. Nessa estrutura, alguns setores foram cruciais agindo para passar um verniz de legalidade e manter o regime. Aqui, analisamos a participação e apoio de alguns setores da medicina que agiram para esconder torturas e assassinatos e manter o discurso do regime.

 

Evelyn Dionízio UP-São Lourenço da Mata (PE). 

 

HISTÓRIA- Quando nos aprofundamos nos estudos sobre a ditadura civil militar de 1964, há alguns casos emblemáticos, que além de terem ganho repercussão internacional servem para mostrar como a manutenção do regime militar não só recebeu apoio de setores mais abastados da sociedade, como também foram cruciais para sustentar os 21 anos de abusos de 1964-1985 e que ainda hoje, quarenta anos desde o fim do regime, ainda não resolvemos enquanto país os males deixados por essas duas décadas de crimes arbitrários. Com o lançamento e a premiação do Óscar o filme “Ainda estou aqui”, levou para o mundo o debate sobre os golpes militares na América Latina e trouxe novamente para as discussões outros casos.  Rubens Paiva foi sequestrado de casa em 1971. Só em 1996, 25 anos depois, com a Lei dos Desaparecidos, foi emitido o atestado de óbito para seus familiares. Sem o corpo, só em 2014, 43 anos depois, que seu assassino foi denunciado.  Essa estrutura de ocultação de cadáveres, sumiço de corpos e uma verdadeira indústria da tortura era possível pela colaboração de membros de um setor que deveria ser impensável em estar desse lado da história. Mas a realidade é implacável: Médicos e profissionais de saúde apoiaram e prestaram seus serviços para manter o regime.

 

Os doutores do regime

Em 1975 o caso do “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog abriu espaço para as denúncias internacionais sobre as práticas de tortura no regime militar brasileiro. A farsa ficou tão evidente que não se pode negar que se tratava de assassinato cometido pelo Estado brasileiro fascista e que os militares não tiveram sequer justificativa para as violações que se escondiam nas diversas casas da morte pelo país, argumentando que se tratava de autoextermínio, alegação muito usada pela ditadura para encobrir seus crimes. Com o aumento das denúncias passou a ficar ainda mais evidente que além da polícia forjar cenas e provas, a imprensa emitir notícias mentirosas sobre os envolvidos e profissionais de saúde ajudavam fraudando laudos e autópsias. Havia a imposição dos militares mas também houve quem prestou seus serviços por questões ideológicas.

Entre os seguimentos de profissionais da saúde que auxiliaram com teoria e técnica nesses encobrimentos, e até na participação ativa nas torturas tiveram médicos, legistas e peritos. Por exemplo, assinaram os laudos periciais mentirosos do assassinato de Herzog os médicos Arildo Viana e Harry Shibata. Desse modo, “desde os primeiros atos de violência do golpe que médicos atuaram como cúmplices, agindo como peças fundamentais do desenvolvimento e da operação da máquina repressiva dos militares.” (CHEVRAND, 2021).

Harry Shibata, médico colaborador dos militares, foi cassado em 1980 graças a intensa luta de médicos que reconheceram as violações aos direitos humanos cometidos pelos colegas de profissão. A justiça brasileira é tão leniente com tudo que ocorreu durante o regime militar que Harry Shibata segue solto ainda hoje, no alto de seus 98 anos, ele que tem seu nome e seus serviços profissionais envolvidos nos laudos dos companheiros Emmanoel Bezerra, Manoel Lisboa, além de ter sido também denunciado em 2023 pelo Ministério Público por também fraudar laudos necroscópicos sobre Sônia Angel e Antônio Bicalho Lana, também mortos em 1973.

Os crimes contra os direitos humanos infligidos nos Anos de Chumbo tiveram importante auxílio principalmente de médicos e de legistas, os quais avaliavam a resistência das vítimas, recebiam instruções para as torturas e ajudavam na ocultação do verdadeiro motivo da morte dos que resistiam. Sua posição estratégica fazia com que estivessem presentes nos mais diversos lugares, de centros oficiais a locais clandestinos de tortura.

Dulce Pandolfi, para a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, relatou que foi usada como cobaia em uma aula de tortura nos anos 70. Presente na sessão, o médico Amílcar Lobo, quando Dulce passou mal, aferiu sua pressão e disse “ela ainda aguenta” (CNV, vol. I, pág. 351). O “Dr. Carneiro”, como Amílcar Lobo era chamado na clandestinidade, foi um dos responsáveis por receber presos políticos na Casa da Morte, localizada em Petrópolis- RJ. O lugar foi um verdadeiro centro de torturas e mortes, descoberto através da denúncia de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa.

Esse aparato sistemático de auxílio aos militares foi essencial para a manutenção da ditadura e no encobrimento dos crimes comandados (e executados) pelos generais fascistas.

Outros médicos que ajudaram na repressão foram João Bosco Rolim Araruna e Agrício Salgado Calheiros, responsáveis por assinar a perícia falsa da morte de Soledad Barrett, militante que lutou com armas contra a ditadura. A versão oficial de 1973, ratificada pelos legistas, diz que Soledad, junto com outros militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foram mortos em uma troca de tiros.

O perito criminal José Zito Albino Pimentel atestou que, na verdade, Soledad Barrett foi vítima de uma execução, sem possibilidade de defesa. Foram encontrados ferimentos que comprovam que ela sofreu diversos espancamentos e torturas (CEMVDHC, vol. 1, págs. 297 e 300), portanto, é completamente falsa a versão dos militares e mostra a fraude do laudo dos legistas assistentes da ditadura.

Agrício Salgado Calheiros, junto com os peritos João Luiz dos Santos Neto e Antonio Victoriano da Costa Barbosa, também foi responsável por assinar mais uma perícia falsa: Manoel Aleixo, o Ventania, foi vítima de troca de tiros e Anatália Melo Alves de enforcamento (suicídio). Quando, na verdade, ambos foram executados e torturados (ibidem, pág. 214 e 330).

 

 

“É preciso dar um jeito” …

 

Para que nunca se esqueça dos heróis que lutaram pela libertação do povo brasileiro, nossa luta é por Memória, Verdade e Justiça, pela punição de todos os responsáveis por manter e executar a ditadura no Brasil. Como exemplo de luta, os companheiros do Partido Comunista Revolucionário (PCR) em Belo Horizonte, junto a outros movimentos sociais e partidos de esquerda ocuparam o antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que serviu como local de diversas desumanidades, além de exigir a construção de um memorial pelos que se sacrificaram pela liberdade da pátria.

Outro exemplo de resistência por memória, a Casa de Referência Soledad Barrett foi o nome dado pelo Movimento de Mulheres Olga Benário em Pernambuco ao ocupar um imóvel em 2022, abandonado há anos, para acolher mulheres vítimas de violência; em memória a uma das resistentes ao regime que massacrou, e ainda massacra, o povo brasileiro.

Após a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 se faz urgente lembrar que os crimes e as arbitrariedades do regime militar brasileiro ainda não é uma página virada. Se a sociedade não exigir reparação, cobrar justiça e trazer para nossos dias, importante contribuição do livro e filme “Ainda estou aqui”, para evitar, como diz a palavra de ordem que não se esqueça e que não se repita jamais.

 

 

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