Reportagem anexada na edição 223 do jornal impresso, página 09.
Heron Barroso
Foto: Reprodução/Getty Images
La Paz – O golpe que levou à renúncia do presidente boliviano Evo Morales no último dia 10 de dezembro coloca diante dos revolucionários e dos povos latino-americanos a necessidade de uma séria reflexão sobre os limites da democracia burguesa e dos chamados “governos progressistas” da região.
Morales foi eleito para seu primeiro mandato em 2006 pelo Movimento ao Socialismo (MAS). Foi o presidente boliviano que mais tempo permaneceu no cargo, num país marcado pela instabilidade política e por dezenas de golpes militares patrocinados pelos Estados Unidos e suas multinacionais.
Neste período, os principais setores da economia foram nacionalizados, levando o país a crescer em média 5% ao ano e a população abaixo da linha de pobreza cair de 63% para 35%, de acordo com o Banco Mundial.
Em 2009, uma mudança na Constituição permitiu a reeleição do presidente Evo Morales por mais dois mandatos, em 2010 e 2014. Em 2016, um referendo tentou modificar novamente a lei em favor de uma nova reeleição em 2019. Porém, a proposta foi rejeitada pelos eleitores por uma pequena diferença de votos.
Apesar disso, em 2017, o Tribunal Constitucional boliviano considerou uma “violação dos direitos humanos” o limite de dois mandatos presidenciais, e permitiu que Evo pudesse se candidatar novamente.
A decisão, que contrariou o resultado da consulta popular, deu o argumento que faltava à oposição e aos grandes meios de comunicação burgueses para ganhar parte da opinião pública e radicalizar a luta contra o governo do MAS.
Veio a eleição, em 20 de outubro, e Evo Morales venceu no primeiro turno com 47,08% dos votos, contra 36,51% do ex-presidente Carlos Mesa (na Bolívia, para vencer no primeiro turno, são necessários 40% dos votos, com uma diferença de 10 pontos sobre o segundo colocado).
A oposição não aceitou o resultado, alegando fraude na apuração dos votos. Lideradas pelo radical de extrema-direita Fernando “Macho” Camacho, do Comitê Cívico de Santa Cruz, manifestações contra a reeleição de Evo foram promovidas nas principais cidades do país. Num primeiro momento, a resposta do governo foi reprimir os protestos. Sem resultado. Todos os dias novos atos eram convocados e o conflito se radicalizava. Grupos paramilitares começaram a sequestrar lideranças populares e indígenas e familiares de ministros, deputados, prefeitos e governadores aliados de Evo para forçar suas renúncias.
O crescimento das manifestações e da violência praticada pela extrema-direita levaram Morales ao seu primeiro recuo: concordar em uma auditoria dos votos promovida pela famigerada Organização dos Estados Americanos (OEA), comprometendo-se a respeitar seu resultado.
A auditoria da OEA, como não poderia deixar de ser, indicou irregularidades nas eleições de outubro. Veio o segundo recuo: em 9 de novembro, Evo convoca novas eleições e substitui todos os membros do Tribunal Supremo Eleitoral, composto por seus aliados. “Depois de escutar a COB (Central Operária da Bolívia), o Pacto de Unidade e distintos setores do campo e da cidade, decidimos solicitar que a Assembleia Legislativa, dentro do princípio constitucional de coordenação, renove o TSE em sua totalidade para convocar novas eleições nacionais”, afirmou o então presidente.
Mesmo com a convocação de novas eleições, o candidato derrotado, Carlos Mesa, seguiu acusando Evo de fraude e exigindo sua renúncia ao cargo.
Morales passou, então, a enfrentar o crescimento dos protestos nas ruas e uma série de motins policiais organizados pela oposição, que contava com apoio do Departamento de Estado dos EUA, do governo de Israel e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, entre outros.
Percebendo que o golpe ganhava força e se tornava irreversível, o chefe das Forças Armadas, general Williams Kaliman, pede a renúncia de Evo. “Ante a escalada de conflito que afeta o país, visando a vida e a segurança da população, a garantia da Constituição, […] sugerimos ao presidente de Estado que renuncie seu mandato presidencial permitindo a pacificação e a manutenção da estabilidade pelo bem da nossa Bolívia”, declarou.
No dia 10 de novembro, veio o terceiro e último recuo: Evo perde o apoio da COB e renuncia para “para que não sigam incendiando casas, intimidando e ameaçando nossas famílias”.
Entretanto, o apelo do agora ex-presidente não foi ouvido. Com sua renúncia, a perseguição a seus partidários e apoiadores se intensificou. Sobre os gritos de “viva a democracia” e “pela glória de Deus”, ministros do Tribunal Supremo Eleitoral foram presos e espancados pela polícia, e o próprio Evo foi declarado foragido e sua casa assaltada, assim como a de muitas outras autoridades governamentais e lideranças sindicais e indígenas.
Evo decide, então, sair do país e pede asilo político ao México, abandonado seus companheiros e milhões de bolivianos. A senadora Jeanine Añez se autoproclama presidente e é imediatamente reconhecida pelos governos dos Estados Unidos e Brasil, apesar de não ter tido um único voto do povo. Está consolidado o golpe e um governo fascista na Bolívia, resultado de um acúmulo de ações dirigidas pela burguesia e pelo imperialismo, que nunca tiveram a real intenção de promover novas eleições ou construir uma saída pacífica para a crise política. O objetivo sempre foi derrubar o governo, aumentar a exploração sobre os trabalhadores e se apossar mais facilmente das enormes riquezas naturais da Bolívia e de seu território estratégico.
De fato, a Bolívia possui as maiores reservas mundiais de índio, um metal raro derivado do zinco e fundamental para a produção de telas de LCD de celulares, TVs e computadores, e de lítio, uma das matérias-primas mais importantes da indústria moderna.
Além disso, a queda do governo Evo Morales também fortalece a estratégia do imperialismo norte-americano para impedir o avanço da influência política e econômica da China e da Rússia no continente (o comércio de ambos os países com a Bolívia representa 21% das importações daquele país e cresceu 30 vezes desde o ano 2000).
Por fim, o golpe ajuda a tirar da defensiva a extrema-direita latino-americana, desmoralizada pela resistência na Venezuela e acuada pela onda de manifestações que tomam as ruas de diversos países (Porto Rico, Haiti, Equador, Chile, Colômbia…) contra as políticas econômicas neoliberais.
Nos dias que se seguiram à renúncia, apoiadores do ex-presidente promoveram manifestações contra o golpe e chamando o povo à luta sob os gritos de “agora sim, guerra civil!”. Barricadas chegaram a ser erguidas, mas o próprio Evo tratou logo de desmobilizar a resistência. “Peço a meu povo, com muito carinho e respeito, que cuide da paz e não caia na violência de grupos que buscam destruir o Estado de Direito. Não podemos nos enfrentar entre irmãos bolivianos. Faço um chamado urgente para que se resolva qualquer diferença com o diálogo”, defendeu.
Essa atitude conciliatória de Morales revela uma profunda ilusão de classe na democracia burguesa e em suas instituições, além de ter desarmado política e ideologicamente o povo boliviano disposto a lutar e resistir ao golpe fascista.
Por que seguir acreditando no Estado de Direito burguês se nem mesmo a própria burguesia tem mais pudor em rompê-lo quando lhe convém? Como esperar paz daqueles que agem o tempo todo com violência? Se havia um golpe em curso por que não se chamou o povo às ruas para denunciar os golpistas e derrotar seus planos?
Alguns setores da esquerda afirmam que Evo foi corajoso ao renunciar, pois assim conteria a violência. No Brasil, em 1964, João Goulart também se exilou para supostamente “evitar um banho de sangue”, mas o único sangue poupado foi o das elites e dos generais. Por 21 longos anos, o sangue de centenas de revolucionários como Manoel Lisboa, Carlos Marighella e Iara Iaverlberg foi derramado nos porões da ditadura militar e até hoje seus assassinos seguem impunes.
O fato é que a luta de classes é a mais dura e cruel luta que existe. Não podemos esperar da burguesia e do imperialismo que tratem os povos com flores e sorrisos. Na luta contra a dominação capitalista sempre estará em risco a vida e o bem-estar dos revolucionários; esse sacrifício é o preço a pagar pela liberdade.
Apesar de tudo, o povo boliviano não está completamente derrotado. É um povo corajoso e, com certeza, se recuperará do golpe e da traição para seguir lutando pela soberania, independência e por um futuro digno para seu país.