Stefan Chamorro Bonow
Doutor em História, professor do IFRS e militante da Unidade Popular
PORTO ALEGRE – Presente no Brasil desde 1919, com a instalação da primeira sede em São Paulo, retira-se daqui por livre e espontânea vontade – o que é o mais revoltante e terrível – a empresa Ford. Desde o início, ela e outras que a seguiram deram o tom da participação traçada para o Brasil nos 100 anos posteriores: montar. Nada de transferência de tecnologia, produção de peças, desenvolvimento de saberes. Para as empresas vindas para cá, o negócio era apenas o de juntar partes, usar mão de obra o mais barata possível, vender com a maior margem de lucro, ser competitivo à custa de salários mundialmente mais baixos.
Até o início dos anos 1960, a plena instalação da estrutura automobilística ocorreu mediante um pacto: a abertura de milhares de quilômetros de estradas e o sucateamento das ferrovias. Isso para, mais do que garantir as vantagens da entrada no mercado nacional, garantir a exclusividade do transporte terrestre como meio de ligação de um vastíssimo território, pouco importando o quão mais caro seriam frete e mercadorias. Na menor ameaça ocorrida, toda a indústria apoiou o golpe contra o presidente João Goulart, em 1964, e colaborou com os 21 anos de ditadura.
As grandes e poderosas corporações multinacionais do setor automobilístico negociam e cooperam com empreendimentos de várias naturezas. Elas fazem aquisições, fusões e diferentes categorias de parcerias e, assim, definem estratégias, estabelecendo alianças que protegem suas margens de lucro em tempos de prosperidade, principalmente no século 21. Nas épocas difíceis, repassam os prejuízos aos países empobrecidos em que se instalam, fazendo novas exigências, ameaças e deixando todos à própria sorte.
Mais do que uma longa trajetória empresarial, de oportunismo e rapina consentida por várias gerações da elite brasileira e partidos que têm governado o país até agora, está chegando ao fim uma etapa do sistema capitalista. Com a crise econômica atual, cujos efeitos passam pela contínua desvalorização da nossa moeda, nem mais para mão de obra barata servimos. Nossa posição no sistema capitalista internacional depende do crescimento do nosso consumo, devido às nossas dimensões territoriais e populacionais, da proximidade a países vizinhos e parceiros.
Com o desemprego que o Governo Bolsonaro insiste em negar associado à inflação e contínua perda de poder de compra do assalariado, vai-se junto um dos pilares que justificaria a permanência da multinacional. Para selar a decisão da Ford, a desvalorização cambial, que tem tornado o dólar mais caro em comparação à nossa moeda, atrapalha a importação de peças necessárias ao processo de montagem dos carros – as mesmas que não foram desenvolvidas nem nos ditos “áureos” anos, por covardia e canalhice na hora de buscar um enfrentamento em nome do crescimento tecnológico brasileiro.
Restaram as isenções fiscais, tradicionais instrumentos de chantagem utilizados pelas multinacionais, em nome da alegada geração de empregos, que fez governos abrirem mão de bilhões de reais em tributos como água, luz, IPI (Impostos sobre Produtos Industrializados), etc. Durante o período de estabilidade e crescimento do início dos anos 2000, pouco de efetivo foi feito para promover a tecnologia aplicada, que aumentaria nossa competitividade.
Na prática, desde a eleição de Collor, experimentamos variações do neoliberalismo. Flexibilização de leis trabalhistas, privatizações, abertura para a entrada e saída livres de capitais, livre competição com produtos externos dão o tom da nossa participação. Foi amplamente facilitada a evasão de dinheiro para o exterior e a sonegação de impostos entre empresas e ricos, mas passamos a viver a crença de que seríamos mais competitivos e desenvolvidos. O resultado é que permanecemos tecnologicamente atrasados e matamos a indústria brasileira.
Houve tempo em que éramos produtores de material bélico (Engesa), aviões (Embraer), automóveis (Gurgel) e tecnologia eletrônica (empresas em parceria com a Telebras e para a produção de condutores e computadores). Hoje debocha-se desse passado e há quem ache bonito que tudo venha do exterior. Nosso lugar deve ser o de mero produtor de insumos simples de origem agrária?
Isenções fiscais e cortes de direitos
Nos últimos doze meses, foram quase R$ 70 bilhões em isenções fiscais às montadoras, concedidas pelo atual governo militar de fachada miliciana. Que não se venha dizer que é apenas por ignorância ou maldade de Bolsonaro. Que não se defenda o humanismo da socialdemocracia, que governa nossos vizinhos da América Latina. Nos países nos quais a Ford permanece, continuam as isenções e nada foi melhorado. Montam automóveis da maneira mais simples.
Alguns ressalvam que a saída da Ford é normal, sendo uma indústria atrasada, de queima de combustíveis poluentes. Ainda mais no caso de uma empresa que está ficando para trás no desenvolvimento de tecnologias alternativas. E será que estamos em condições de abrir mão de alimentar trabalhadores? Nós, em nome de uma tecnologia longe de ser desenvolvida aqui, num governo que corta gastos com ciência e tecnologia? Que os países ricos comecem a dar o exemplo, abrindo mão de poluir.
A verdade, porém, é que a única maneira de garantir independência e soberania ao Brasil é a classe trabalhadora expropriar essas plantas de montagem de veículos, nacionalizar as mesmas áreas abandonadas pela Ford e que custaram bilhões aos cofres públicos (entenda-se cidadão brasileiro) e garantir os empregos.
É necessário construir uma alternativa de poder no Brasil, e esta alternativa não pode ser a direita autodenominada “centrão”, mas sim um governo socialista, que tenha certeza de quais interesses representa: os da classe trabalhadora. Somente o fim da conciliação de classes e a construção de um país sem explorados nem exploradores vai resolver os problemas econômicos de nosso país.
Página 07 – JAV Edição 235