Quando falamos de cultura, a diversidade brasileira salta aos olhos de todos. Desde peças de teatro, músicas e novelas, o Brasil possui uma gama de produções que tornam possível verificar as mais diferentes formas de ver e interpretar a nossa história. Não à toa, o nosso país tem quase duas versões.
Antônia Velloso
Militante do Movimento Perifa Zumbi no Rio de Janeiro
CULTURA – De um lado, a história dos que têm interesse em reforçar uma narrativa já superada pela historiografia, na qual os ricos, exploradores são colocados como pessoas do bem que fazem favores ao povo. E, de outro lado, os verdadeiros compromissados com a história brasileira, que usam suas produções artísticas como veículo de reafirmação desse compromisso e de denúncia dos absurdos que são contados até hoje nas escolas, mídias, etc.
Um exemplo claro disso é a novela da Rede Globo, Novo Mundo, que foi ao ar em 2017. A Rede Globo é conhecida por ser a mídia dos grandes milionários brasileiros, a mídia que apoiou a Ditadura Militar Fascista. E a mesma produziu essa novela que em todo momento colocou Pedro I como um grande aliado dos indígenas, negros e pobres. Quando, na realidade, era mais um herdeiro dos chicotes e armas que torturaram e assassinaram o nosso povo.
Ainda nessa novela, na cena em que é reproduzida a Independência do Brasil, são retomados diversos fragmentos de cenas, que colocam o então príncipe regente como um governante do povo. Ao final da cena, Pedro I, estrelado por Caio Castro, faz um grande discurso ao povo brasileiro presente nas margens do Ipiranga, jurando fazer jus à liberdade do Brasil. Mas quando vamos aos fatos, o estudo da história já chegou ao ponto de afirmar que o decreto da independência do Brasil não tinha povo e que muito provavelmente, Pedro I sequer estava fora de seus aposentos reais na data. O grito “independência ou morte” foi um grande negócio das elites brasileiras que estavam com seu capital ameaçado.
É necessário resgatar a verdadeira história do povo brasileiro
Por outro lado, podemos apresentar milhares de produções artísticas construídas pelos nossos semelhantes que representam a verdadeira história do Brasil. Passando pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira com seus enredos “100 anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?” (1988), no qual denuncia que, mesmo com o fim da escravidão, os negros foram “livres do açoite da senzala / presos na miséria da favela” e no enredo “História pra Ninar Gente Grande” (2019) que, em contraponto a historiografia tradicional, que exclui os verdadeiros heróis do Brasil, a escola traz nos versos “Brasil, chegou a vez / de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”.
Também é o caso da Escola de Samba Em Cima da Hora que em 1963 tem como enredo a Insurreição Pernambucana e da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel que no centenário da abolição da escravidão veio com o enredo “Kizomba, festa da raça”.
Além das escolas de samba, compositores como Nei Lopes em “Jongo do Irmão Café” fala da resistência do povo negro nos versos “Mesmo usados, moídos, pilados / Vendidos, trocados, estamos de pé”.
Ou ainda em Nei Lopes, que após presenciar um caso de racismo, compõe, em parceria com Cláudio Jorge, “Luxuosos Transatlânticos” fazendo uma ironia do processo histórico de rapto e escravização do povo africano no Brasil. Mostrando que a historiografia precisa ser compromissada com a verdade do nosso povo. Não só a historiografia como também a cultura.
Vale lembrar que Nei Lopes foi barrado como doutor honoris causa na UFRJ, demonstrando mais um claro caso de racismo pelas instituições. Entidades repudiaram essa ação e a Universidade hoje reconsidera conceder o título para o compositor. Apesar disso, e filhos das raízes da cultura popular, diversos artistas, atualmente, como MC Demo e GB Montsho, continuam se organizando e pegam o “sangue aqui derramado” e transformam “em adubo pra revolução”, colocando mais uma vez a cultura negra e popular como um polo de luta, organização e resistência do povo brasileiro.
Valorizar a produção artística nacional, de forma livre do grande capital, é o único caminho para construir uma cultura nacional
Infelizmente, a cultura popular, por buscar quebrar as barreiras dessa narrativa anti-povo, é perseguida pelos governantes. O samba foi criminalizado no final do século XIX como vadiagem e por mais que hoje seja legitimado e reconhecido como cultura brasileira, ainda briga muito para que seus artistas menos conhecidos tenham espaço e reconhecimento social com trabalhadores.
Essa perseguição à cultura popular, como foi com o samba, não para no século XIX e continua acontecendo com outros ritmos oriundos da cultura popular negra e da periferia. É o caso do funk – que sofreu uma tentativa de criminalização no Senado em 2017 – e do rap que seguem sendo vítimas diretas e indiretas da polícia e governantes, por não representarem uma cultura que siga os padrões burgueses de ordem. Além disso, suas produções são tidas como se não tivessem uma bagagem suficiente para serem considerados cultura. Os negros sempre são colocados à margem da produção artística, colocados em um nicho místico ou ritualístico, com objetivo de perpetuar a narrativa de incapacidade intelectual e cultural.
Mas quando nos aprofundamos nessa incongruência, vemos o justo oposto. As produções populares em todas as esferas representam produções verdadeiras, que contam a realidade da população pobre. A historiografia brasileira tem sido ocupada, cada vez mais, com a nossa narrativa, e a tentativa de apagar nossa história tem cada vez menos espaço. A história do Brasil é a história de luta e resistência do povo indígena, negro e pobre.
Dona Ivone Lara se faz cada vez mais necessária. Quando fala “Negro é a raiz da liberdade” nos faz relembrar de um dos pilares do Movimento Negro Perifa Zumbi de que “Poder Negro é Poder Popular” e apenas com a organização do povo negro, em conjunto da organização da população pobre e trabalhadora poderemos construir a nossa liberdade.
Viva a cultura popular e as lutas do povo negro!