José Levino
Jesus nasceu na Palestina. Filho de José, um carpinteiro de Nazaré, aldeia da Galiléia, e de Maria, uma jovem. Esta contou que um anjo lhe anunciara que daria à luz um grande homem, a quem deveria dar o nome de Jesus, e que ele seria chamado Filho do Altíssimo e elevado à condição de rei e “seu reinado nunca acabará”. A visão de Maria expressa a esperança do povo hebreu na vinda de um Messias, que o conduziria à liberdade e instalaria um reinado de paz, justiça e igualdade.
Os hebreus eram, em sua origem, um povo asiático nômade, que exercia a atividade pastoril, e se dividia em comunidades tribais. Nelas, não havia propriedade privada, os bens produzidos pertenciam a todos, num regime de comunismo primitivo.
Em 1750 a.C, fugindo de uma terrível seca, emigram para o delta do rio Nilo, em território egípcio, onde servem aos faraós por 400 anos. Deixam o Egito em 1250 a.C, liderados por Moisés, em busca da Terra Prometida, onde chegam 40 anos depois, dominando os cananeus, que ali residiam.
Surge a exploração do homem pelo homem
Em Canaã (Palestina), já existia comércio, indústria, e o sistema econômico se fundamentava na propriedade privada. Os invasores são absorvidos por esse sistema, dividindo o povo hebreu em ricos (a minoria) e pobres (a maioria). Os ricos mudam, inclusive de religião, passando a cultuar Baal, o deus da prosperidade, das festas, da fertilidade, enquanto os pobres continuam adorando Javé, o deus do deserto, das guerras, do sofrimento. Aí, surgem os profetas, aqueles que clamam contra a devassidão, o enriquecimento, a destruição da vida comunitária e anunciam a Boa Nova, a vinda de um libertador (Messias), que promoverá o retorno à vida em comum. Isaías, Jeremias e Amós, por exemplo, bradam contra a exploração dos oprimidos, clamam por Justiça Social e ameaçam os ricos com castigos severos.
Foi curto o período de tranquilidade, pois vieram os ataques e a dominação dos impérios da época: assírios, babilônios, macedônios e, finalmente, os romanos. Tendo que retomar a guerra, a classe dominante voltou a cultuar Javé, mas não abriu mão das suas propriedades e privilégios para retornar à vida coletiva.
Quando Jesus nasceu, a Palestina era província de Roma. Na Economia, havia no campo os pequenos proprietários, que produziam para a subsistência da família e grandes propriedades que forneciam produtos para as cidades e para o Império. Nestas fazendas, trabalham escravos e assalariados. Nas cidades, artesãos, trabalhadores da construção civil e do comércio, convivendo o trabalho escravo com o assalariado, e um setor médio formado por artesãos, pequenos comerciantes e funcionários públicos (escribas, cobradores de impostos, etc.). No campo, havia ainda os pescadores, que moravam em torno dos grandes lagos.
O poder político era exercido pelos fariseus e saduceus, aliados dos romanos, que só interferiam para cobrar o tributo, nomear os sumo-sacerdotes (entre as quatro famílias mais ricas) e decidir a pena quando alguém era acusado de crime político.
Os pobres e os setores médios eram contrários à dominação romana. Alguns deles organizaram um movimento armado, chamado zelotes, que queria expulsar os romanos e assumir o poder político, representado pela tomada do Templo de Jerusalém, que era, de fato, a sede do governo.
Existiam, ainda nas aldeias, os essênios, movimento de camponeses pobres que nunca abandonaram a vida comunitária. Eles moravam nas aldeias, não utilizavam a terra para fins comerciais, tirando dela apenas o necessário para a subsistência. Viviam como irmãos. Seu princípio maior era o amor ao próximo. Nos escritos de José, historiador da época, vê-se que os essênios “desprezam a riqueza e vivem em comum. Não há entre eles nenhum indivíduo situado acima dos demais. Uma lei obriga a quem entrar para a seita a entregar todos os bens à coletividade. Não há miséria, luxo ou desperdício entre os essênios. Elegem os administradores da riqueza comum e se dedicam exclusivamente ao bem-estar coletivo. Mantêm-se à margem das lutas políticas”.
Quem é este homem?
Cedo, o menino revelou-se inteligente e interessado em conhecer as doutrinas da época e a vida do povo. Morando numa aldeia, Nazaré, conheceu os essênios, com quem aprendeu o desapego às riquezas, partilha dos bens, amor ao próximo, vida coletiva. Com os estoicos (filosofia helênica trazida pelo domínio de Alexandre, da Macedônia), identificou-se com o apego à verdade (“A verdade vos libertará”), a dedicação radical à causa (“O Pai não aceita o morno; ou se é quente ou se é frio”) e a serenidade em qualquer circunstância (“Enfrentou o martírio com dignidade e tranquilidade”). Frequentou as sinagogas e bebeu na fonte das profecias, especialmente de Isaias, de quem gostava de citar : “Trago comigo o espírito de Deus, que me enviou para anunciar a boa-nova entre os pobres…”. Assim, as três fontes constitutivas do cristianismo foram: a prática dos essênios, a filosofia dos estoicos e a religião dos profetas hebreus. A isso, Jesus acrescentou uma espiritualidade mais profunda que a de todos eles.
Somente aos 30 anos de idade, sentiu-se preparado para levar a mensagem ao povo. Inicialmente, a impressão é de que se tornaria um líder zelote, pois dizia: “Não vim trazer a paz, e sim a guerra; quem não tiver arma, venda seu manto ou seu arado e compre uma”. Mas logo mudou de estratégia. Concluiu que de nada adiantaria expulsar os romanos e tomar o poder político, se as pessoas permanecessem egoístas, ambiciosas, adoradoras do deus Mamon (riquezas). Era preciso que os pobres se convertessem, se tornassem essênios. E, para isso, é preciso “amar ao próximo como a si mesmo”.
Jesus não buscava confronto com o poder romano ou local, mas este aconteceria inevitavelmente porque sua pregação implicava mudança radical nos costumes. Deixava que seus discípulos colhessem aos sábados, pois a necessidade humana está acima da lei que mandava guardar este dia: “O homem não existe para o sábado, mas o sábado para o homem” (Marcos, 2); condenava a exploração de classe: “Benditos vós, os pobres, pois o Reino de Deus é vosso; malditos os ricos, porque já estão fartos”, e “Os pobres possuirão a Terra”. (Sermão das Bem-Aventuranças).
Escolheu um grupo de 12 auxiliares diretos (os apóstolos) para a missão, entre os pobres, especialmente pescadores. Multidões o seguiram e ele mostrou os benefícios da economia de partilha, alimentando cinco mil pessoas com o pouco que cada um trazia, a partir dos cinco pães e dois peixes dos apóstolos. Quer dizer, quando se coloca os bens em comum, o pouco de cada um se multiplica e ninguém passa necessidade.
Três anos depois de pregar pelas aldeias palestinas, resolve entrar na capital, Jerusalém, centro do poder econômico político. Simbolicamente, foi à frente da multidão montado em um jumento, para dizer que não queria guerra (os zelotes andavam em potentes cavalos), mas apenas dizer a Palavra na cidade, para os peregrinos de todos os lugares, pois era a celebração da Páscoa (passagem da escravidão do Egito para a liberdade).
Quando chegou ao Templo, encontrou-o tomado por mercadores de todo tipo. Chamou seus seguidores e num momento raro de cólera, expulsou os comerciantes à força, bradando: “A Casa do meu Pai é casa de oração e não covil de ladrões”. O Poder sentiu-se ameaçado e achou que por trás do pacifismo de Jesus, então conhecido como o Cristo (enviado, ungido), gestava-se um movimento de massas contra a dominação romana e o poder local. O Conselho do Sinédrio mandou prendê-lo. Mas não queria fazê-lo no meio da multidão. Taticamente, à noite, Jesus e os mais próximos iam dormir em um dos morros próximos da cidade, sem informar onde estava. Um dos apóstolos, entretanto, Judas Iscariotes, traiu-lhe.
Barbaramente torturado em via pública, Jesus foi levado para um dos morros, o Gólgota, e crucificado, pena máxima reservada para os grandes salteadores e para os insurretos zelotes. O Cristo morria, apenas fisicamente, pois, como acontece com todos os seres especiais, sua mensagem permaneceu e se propagou pelo mundo inteiro.
Fonte de libertação
Os apóstolos não eram grandes pregadores, mas organizadores. Depois da morte de Cristo, buscaram organizar seus adeptos em comunidades, tanto na Palestina quanto nos países vizinhos e em Roma. Estas comunidades praticavam o comunismo primitivo dos essênios: “Vendiam tudo o que tinham, colocavam em comum, e não havia necessitados entre eles” (Atos dos Apóstolos). Eram comunidades autônomas, não havia centralização.
As mudanças começam com a adesão de Paulo, um perseguidor dos cristãos, que se converte ao cristianismo. Intelectual, doutrinador, Paulo transforma as mensagens de Cristo em dogmas e prioriza a fé, embora não combata as comunidades. Nem fala, entretanto, da vida em comum. Seu foco é a fé, a ponto de ser questionado pelo apóstolo Tiago: “De que vale a Fé sem ações, sem obras?”.
Mas o poder de convencimento de Paulo leva a mensagem cristã e ganha adeptos por todo o mundo então conhecido. Setores médios e ricos vão aderindo cada vez mais à nova religião, cuja moral se apresenta muito superior ao paganismo decadente. Mas os ricos não colocam seus bens em comum. Para aceitá-los, o princípio é flexibilizado – basta ajudar os necessitados com uma pequena parte do que se tem (a caridade e a esmola substituem a partilha). Paulo, o intelectual, vence a disputa com Pedro, o pescador.
Os cristãos, inclusive Paulo, antes perseguidos e massacrados pelos imperadores romanos, no governo de Constantino (312 d.C) veem o cristianismo tornar-se religião oficial do Império romano e adotar a estrutura da Corte (hierarquia, culto, vestes, etc.). Nasce a Igreja Católica, integrante ou aliada das classes dominantes no fim do Império Romano, por toda a Idade Média, abençoando a colonização da África e da América na Era Moderna, ditando que negros e indígenas não têm alma e, por isso, poderiam ser escravizados.
Mas a essência da mensagem transformadora de Jesus Cristo sempre ressurgiu. Na Idade Média, os movimentos heréticos procuraram mantê-la e refundar as comunidades até serem exterminados pela Inquisição e pelas Cruzadas. Renasce durante a invasão das Américas com a criação das comunidades comunistas guaranis no Sul do Brasil (A Verdade, nº 5), com as Comunidades Eclesiais de Base após o Concílio Vaticano II. Fomentadas por bispos do povo do quilate de dom Helder Câmara (A Verdade, nº 99ֻ) e dom Pedro Casaldáliga (A Verdade, nº 202), apesar de marginalizadas por dois papados – João Paulo II e Bento XVI – elas retomam sua força a ponto de influenciar a CNBB, que lançou, juntamente com algumas igrejas cristãs, a Campanha da Fraternidade, com o tema Economia e Vida – Vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro.
Este tema permite a retomada da reflexão sobre a prática comunitária, coletiva, comunista dos primeiros cristãos. A essência do cristianismo permanece em pastorais como a CPT, que já deu vários mártires em apoio à luta dos camponeses pobres brasileiros pelo direito à terra para quem nela trabalha, e chegou ao papado com a eleição do cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio, simpatizante da Teologia da Libertação (Papa Francisco).
Marxismo e Cristianismo
Marx não criou a ideia de comunismo. Na verdade, este era o modo de vida das comunidades primitivas e se tornou essência da doutrina cristã. Marx mostrou que, na sociedade capitalista moderna, a construção de uma sociedade comunista passa pela compreensão científica do capitalismo para preparar sua superação e pela tomada do aparelho de Estado, não bastando a criação de comunidades, como fizeram os cristãos e os socialistas utópicos. E disse que “a religião é o ópio do povo”.
Não há como negar que, desde que se tornou religião de Estado, a serviço das classes dominantes, a mensagem de Cristo foi deturpada pela Igreja Católica e também pelas cisões protestantes. Mas não se pode desprezar a força de uma mensagem que, mesmo enfrentando a repressão externa e interna, retoma sempre seu caminho original que conduz à conscientização e ao engajamento do povo em vista de sua libertação.
Estas correntes, a exemplo do seu fundador e dos primeiros cristãos, priorizam a ação, embora não desprezem a fé, e seu objetivo final é uma sociedade sem classes, fraterna, com igualdade, justiça, partilha, em que o poder de decisão seja de todos. Isto define a sociedade comunista. Então, os verdadeiros marxistas e os verdadeiros cristãos têm um objetivo comum. Com respeito mútuo, podem, assim, construir alianças estratégicas, duradouras.
José Levino é historiador
Fontes de Consultas:
- História do Socialismo e das Lutas Sociais, Max Beer
- Leitura Política do Evangelho, Fernando Belo
- Cristianismo e Marxismo, Frei Betto